Ainda que a experiência da prisão possa assumir formas e modalidades variadas, ela está sempre marcada pela violência e pela inscrição do preso, enquanto sujeito, em uma situação de exceção. Diferentes contextos históricos, políticos e geográficos, além das evidentes dessemelhanças entre os próprios presos, configuram essa multiplicidade de experiências. Ao analisarmos a literatura que narra a experiência da prisão e/ou que é produzida no interior dela, também nos deparamos com tal diversidade. Contudo, é possível verificar uma constante no interior dessa produção literária? Como questiona Roberto Vecchi, será que a prisão conserva e alimenta uma relação especial com o pensamento? Dentro do contexto de produção literária luso-afro-brasileira ligada à experiência da prisão, gostaria de destacar aqui as obras Memórias do cárcere e Papéis da Prisão, respetivamente do escritor brasileiro Graciliano Ramos e do angolano José Luandino Vieira. Presos por suas ideias políticas, ambos mantiveram uma relação privilegiada com a escrita, apesar das circunstâncias excepcionais impostas pela prisão. Nessa perspectiva, o caso de Luandino é exemplar já que não só os Papéis, mas a maioria da sua produção literária remonta aos anos da cadeia. Graciliano e Luandino recorreram à escritura e ao estudo como instrumentos para contrastar o perigo sempre iminente de um embrutecimento moral e intelectual. Porém, não se trata de uma escrita com função exclusivamente terapêutica, nem de um simples entretenimento. No estudo e na escrita do cárcere enxergamos uma exigência que transcende o imediatismo do contexto e se configura como prática intelectual livre dos vínculos, das contingências e das penúrias do presente. Uma prática pela eternidade, ou für ewig, para usar uma expressão de Antonio Gramsci, outro grande escritor do cárcere. Retomando em alguma medida o título de uma das obras mais conhecidas do filosofo italiano Giorgio Agamben, o que proponho analisar, aqui, são as principais caraterísticas das duas obras e seu papel de arquivo e testemunha, além da sua importância no campo puramente literário. Pelos contextos e pelas condições de produção, mas sobretudo pela sua natureza textual, as duas obras se colocam em dois extremos da produção literária que surge da experiência do cárcere. Por isso, na análise, recorremos ao método comparativo, que pode nos ajudar a evidenciar não só as semelhanças entre as obras, mas também as diferenças. A primeira diferença se nos apresenta logo nos títulos das duas obras: Memórias e Papéis. Enquanto o primeiro remete a um gênero literário já estabelecido que pressupõe uma narrativa autobiográfica bem estruturada, o segundo nos faz pensar numa série de folhas espalhadas e reunidas, se não ao acaso, também sem um projeto literário específico e sistematizado. As Memórias situam-se na fronteira entre ficção literária e realidade, sendo que o texto oscila constantemente entre uma esfera política de denúncia da violência do Estado e uma esfera privada, na qual se expõem os sentimentos e os pensamentos do autor. O resultado é uma narrativa que, embora verdadeira, também não se constitui enquanto documento histórico; um texto que se apresenta como ato literário, mas ao mesmo tempo reivindica seu lugar no campo do real. É preciso não esquecer que as Memórias do Cárcere são a elaboração literária da experiência de detenção do autor, elaboração feita depois de décadas de distância do evento e após muitas reflexões, inclusive sobre o porquê e a forma como contar casos passados há muitos anos num contexto tão sofrido. Graciliano admite ter sido obrigado a destruir as anotações que mantinha, todavia, estas não lhe fazem falta na hora de escrever: no primeiro capítulo das Memórias, verdadeira declaração de intenções do autor, ele chega a afirmar que não possuir as anotações pode até vir a ser uma vantagem para conseguir criar uma boa narrativa literária. Por outro lado, Os Papéis da Prisão são compostos pelos apontamentos tomados no dia a dia da reclusão de Luandino Vieira. Como ele mesmo declarou na sessão de lançamento da sua obra, os Papéis não são um livro, mas doze anos na vida de uma pessoa. Aliás, não de uma só pessoa, na medida em que os Papéis reúnem cartas, poemas, desenhos, bilhetes, canções, contos populares que o Luandino recolheu entre os presos que partilharam com ele a experiência da cadeia. Por isso, os Papéis se configuram como um verdadeiro arquivo que permite reconstruir os anos da luta pela independência de Angola a partir e através do ponto de vista da prisão –espaço de grande repressão, mas também de grande resistência.