PEDROSA, Celia et. al. (Org.). Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018, 263 pp., ISBN: 978-85-423-0255-4.

PEDROSA, Celia et. al. (Org.). Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018, 263 pp., ISBN: 978-85-423-0255-4.

Vinícius Ximenes[1]

[1] Doutorando em Literatura Comparada no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense; bolsista CAPES-PROEX.


Publicado em 2018 pela Editora UFMG, o Indicionário do contemporâneo, livro coletivo de 14 "ensaístas-pesquisadores-professores" latinoamericanas/os, surpreende por sua iniciativa de convergir e condensar, em "verbetes indiciais", uma alongada série de trabalhos de investigação teórica. A apresentação assinada pelos quatro nomes organizadores – Celia Pedrosa, Diana Klinger, Jorge Wolff e Mario Cámara – nos conta da feitura do livro, oriundo de encontros de grupos de pesquisa estabelecidos em diferentes geografias da América do Sul: em vez de compilar os textos lidos num simpósio, optaram por um exigente experimento de "reinvenção coletiva" de certos conceitos recorrentes em suas reflexões acerca da literatura contemporânea, experimento esse alinhado a um ímpeto maior de questionamento da autoria e ao desejo de visibilizar uma interação que é também constitutiva das práticas artísticas comentadas em suas pesquisas – supostamente – individuais.

O livro, então, nasce de uma interrogação a "como escrever em colaboração". Antonio Andrade, Antonio Carlos Santos, Ariadne Costa, Florencia Garramuño, Luciana di Leone, Paloma Vidal, Rafael Gutiérrez, Raúl Antelo, Reinaldo Marques e Wander Melo Miranda completam o coletivo responsável, junto aos organizadores. Do ponto de vista da produção de conhecimento na universidade pública, no âmbito de um diálogo entre membros dos Programas de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da UFF e em Literatura da UFSC, ampliado a pesquisas sediadas em outras Universidades brasileiras e argentinas, é destacável de partida a "polinização cruzada" de diferentes linhas de força teórico-críticas, colocadas para comentar umas às outras, de modo a proliferar as entradas em cada debate.

Composto de seis ensaios relativos a conceitos que "incidem de modo decisivo sobre o pensamento das artes e literaturas atuais", ou sobre a "imaginação-pública-contemporânea", sobressai o encadeamento interno (um enovelamento, digamos) das questões teóricas implicadas: não são poucos os momentos em que um link de grande rendimento para adensar a discussão acompanhada num verbete já passado é encontrado aparentemente "fora do lugar" (em outro verbete). E não é sem motivo que o livro está assim composto. Dedicado sobretudo à "questão do contemporâneo", caracterizada pela desconexão/defasagem em relação a um regime de historicidade que privilegia o instante imediato, o Indicionário busca também discutir os "modos de leitura com os quais se constrói a politicidade da literatura" (p. 10).

O trajeto é de longos anos, a começar por um encontro em Cali no talvez já distante 2012, ao que se seguiram muitas trocas de e-mail, a formação de duplas de trabalho responsáveis por um verbete, a recepção de sugestões, cortes e seleções até chegar aos eixos definitivos, releituras e mudanças na correspondência verbete-dupla, além de novos encontros presenciais. Tudo isso contribui para a composição de um texto relativamente anônimo/impessoal em sua assinatura e tom, e de fato multitudinário em seu modo de produção (devidamente registrado e reivindicado indicialmente nas páginas dedicadas à discussão do conceito de multidão – proposto por Toni Negri & Michael Hardt – no verbete "Comunidade", em meio à irrupção das manifestações de 2013, pelas quais o livro é inevitavelmente afetado e animado). A exigência posta por esse fazer coletivo, portanto, termina por ressaltar o cuidado com que o resultado final foi pensado e editado, até vir finalmente a público em 2018.

Os seis verbetes/conceitos, enfim, são: "Arquivo", "Comunidade", "Endereçamento", "O contemporâneo", "Pós-autonomia" e "Práticas inespecíficas". Sem abrir mão de uma generosidade expositiva – tal qual um dicionário conceitual –, logo somos acostumados ao pressuposto de que o objetivo é mesmo a indefinição e o trânsito: aberturas, sinais, aludindo pouco a pouco ao "caráter arbitrário de todo conceito e de seu uso como fundamento" (p. 141) – e desacreditando, afinal, o "desejo de um termo guarda-chuva" que possa explicar o presente (p. 192).

Ao apresentar seu entendimento de que há um "impacto mútuo" (p. 66) entre as esferas de atuação e pensamento, micro e macropolítica, cultura e economia – situação que solicita uma crítica permanente dos lugares estabilizados da forma e do sentido –, os verbetes praticam um modo de pensar a partir da relação e do vínculo, recusando a percepção de um sujeito fechado em identidades já rastreadas pelas instituições e pelos dispositivos de mercado. Assim, o caráter colaborativo da escrita, conforme passa de um debate a outro, gera um efeito recursivo, fazendo do livro – como a apresentação propõe – um indicionário de nós, puxados, entendidos, enunciados e entrelaçados como "nós teórico-críticos das políticas literárias do presente" (p. 12).

Contra as "pretensões cientifico-positivistas", o primeiro verbete propõe pensar o arquivo contemporâneo em descompasso ao ritmo de um acúmulo museológico de valor – e ao controle de reputação autoral –, o que implica resgatar um traço fantasmático daquilo que se coleciona, com seus restos, o espectral e o sobrevivente: essa postura, que começa por ressaltar toda origem como montagem (e visibilizar a disputa política daí decorrente), impulsiona a assumir a responsabilidade de uma administração coletiva da memória: junto à filosofia da história de W. Benjamin, à arqueologia de M. Foucault e à leitura da psicanálise por J. Derrida, somam-se os nomes de Aby Warburg, Arthur Bispo do Rosário e Rosângela Rennó, indicando usos e procedimentos de coleção que promovem uma desarticulação do historicismo unilinear, dando a ver movimentos de democratização da enunciação e do relato que escapam ao monumento estável e à historiografia de Estado, voluntarista e triunfal. O filme Santiago, de João Moreira Salles, é também comentado de modo a sugerir que o trânsito em arquivo leva consigo um gesto em direção à experiência do outro, na tensão entre ordem e desordem. Com seus documentos de barbárie, os arquivos contemporâneos são especialmente fortes quando nos mostram sujeitos inseguros, dilacerados, à procura, em recomposição.

Como ressalta Jean-Luc Nancy, convocado na transição entre os primeiros verbetes, há um "trabalho coletivo" de repensar o comum (p. 61) que se impõe no século XX europeu, onde se explicita exponencialmente a capacidade de autodestruição humana, em meio às guerras e ao antissemitismo. A esse movimento de reimaginar os vínculos coletivos, o modo de composição do Indicionário associa e enaltece um gesto coletivo de leitura, visível quando nos aponta que desde Georges Bataille "vem se gestando e desdobrando um trabalho intelectual conjunto a respeito da noção de comunidade que desloca a concepção tradicional dos laços comunitários, no que se refere aos signos ou atributos de pertencimento e propriedade (língua, religião, raça, nação, etc.)" (p. 59) – e que, em decorrência, promove "modos diversos" de desconstrução. É nessa atitude de ver e visibilizar os indícios de um problema comum, compartilhado na diferença, com entradas e perspectivas singulares, que poderíamos caracterizar o gesto motriz deste esforço de pensamento praticado no livro que aqui resenhamos; pois a ressonância dos debates propostos por esses filósofos diversos (Bataille, Nancy, Agamben, Esposito, Negri, etc.) na discussão das artes é logo perceptível por analogia: "como se a linguagem poética se autoproblematizasse em sua potencialidade de produzir sentidos para além da doxa da representação" (p. 82). Temos então um repensar da comunidade, diante do êxodo das identidades, que não se restringe à filosofia; e exemplares, aqui, são os poemas de Tamara Kamenszain – ou melhor, sua novela de la poesía, através das situações enunciativas e de seu manejo dos pronomes, projetando simultaneamente "múltiplas formas de endereçamento" e encenando pequenos movimentos pendulares entre o singular e o coletivo (pp. 83-9).

A discussão do comum a partir dos pronomes puxa o próximo verbete, "Endereçamento", que reiterará o questionamento ao sujeito fechado a partir do jogo pronominal na poesia de Ana Cristina Cesar, retomando observações de Silviano Santiago, Flora Süssekind e Marcos Siscar. Contra uma concepção acabada de objeto literário, essas propostas de leitura projetam o poema de Ana C. como diálogo, cena feita de sujeitos (eus) em aberto, em obra, em deslocamento. O endereçamento faz da forma poética, portanto, um "entrecruzamento plural de formas" (p. 103), passando pelo ensaio e pela autobiografia, mas fugindo da representação através de uma "estratégia de irritação e de sedução do leitor". O preenchimento possível dos espaços pronominais projetados pelo poema, indeterminado de antemão, abre ainda espaço para uma discussão acerca do "poético enquanto circunstância" (p. 147) – e assim o verbete do "Endereçamento" excede o debate em torno do poema e se abre às diversas outras artes, contanto que problematizem os laços e o convívio. Ao enfatizar a importância do dissenso e do litígio no pensamento do coletivo, é sugerida ainda uma aproximação à tradição tropical/ameríndia da antropofagia cultural, que desafia a assumir a primazia da alteridade nas formações (sempre provisórias) do discurso e da subjetividade.

À medida em que expõe seu campo de forças, o Indicionário nos incentiva a ler na instabilidade das formas um manancial de questões políticas alinhadas à crise de representação e ao caráter tateante implicado numa ainda incipiente (porém vigente) busca de alternativas organizacionais. As obras que interessam discutir, pois, são aquelas que não se projetam em um futuro já imaginado e nem se situam fixas em relação ao passado, mas propõem uma efetividade relacional, transitiva, pragmática, que tensiona e atrita o comum, a partilha aqui e agora. Trata-se, então, de assumir uma "tarefa mais modesta de produzir experiências sensoriais e comportamentais", vislumbrando aí a oportunidade de "indagar novas formas de estar no mundo" (p. 108).

A proposta de discussão das artes contemporâneas, tendo em vista a "fragilização e contaminação de sua especificidade" (p. 127), é marcada pela radicalização do ímpeto expansivo das vanguardas históricas, com uma intensificação da circulação de procedimentos do cinema (montagem), da pintura (colagem), da plástica (obra-instalação) e da cênica (textos-performance). Noções como campo expansivo (por Rosalind Krauss), estética relacional (por Nicolas Bourriaud) e estética de laboratório (por Reinaldo Laddaga) são levantadas de modo a visibilizar uma "autoria em andamento" (p. 129) que se encontra em algumas dessas práticas, literárias ou não, entendidas enquanto obras que se apresentam como "uma duração que é necessária experimentar e como uma abertura possível para um intercâmbio inesperado" (p. 110). Em outros termos, contornadas as pretensões intencionais de significação, é na interação e na possibilidade de a leitora/espectadora fazer suas próprias conexões, irrastreáveis e adiante, que reside uma promessa de sentido à altura da complexidade de um circuito de afetos pulsante, questionando as lógicas da copresença e da coincidência plena.

O alcance agudo dos ensaios é também indício de um empenho para explicitar a historicidade de seus pressupostos em cada verbete, tarefa que põe imediatamente o desafio de saber equilibrar o debate propriamente epistemológico (mas nada aqui é exatamente próprio...) e a exposição de atualizações práticas das questões vinculadas a esses modos de pensar (a comunidade, o convívio, o contemporâneo), oferecendo exemplos do que entendemos como um fazer artístico institucionalmente reconhecido e, ao mesmo tempo, crítico do esteticismo. Daí que os exemplos nos quais o livro se debruça com mais demora sejam quase todos deliberadamente fronteiriços ou inespecíficos: Tamara Kamenszain, Nuno Ramos, Lygia Clark ou Mario Bellatin. As ambições emancipatórias da Modernidade artística são assim questionadas e reavaliadas através de uma perlaboração que valoriza o "lacunar" e o "impreciso", de que seria exemplo a trajetória teórico-crítica de Silviano Santiago, em sua prática comparativista que projeta uma ausência de fundamento no seio mesmo de seu conceito guia: o entre-lugar. Em afinidade a essa sensibilidade autocrítica, o livro comenta propostas que jogam com as expectativas de recepção e excedem um suporte identificável, de L. Clark, Helio Oiticica ou Adriana Varejão; ou com as expectativas de intimidade, de Sophie Calle e Marina Abramovic; ou ainda escritos de Carola Saavedra, Bernardo Carvalho ou Nuno Ramos, que refletem sobre os materiais e arquivos com que trabalham. O que se identifica como destacável, aqui, está no fato de que esse "movimento de autorreferência" difere daquele das poéticas modernas, quando havia uma "valorização da criatividade individual do artista e a afirmação 'metaliterária' do caráter construtivo e ficcional da obra": no gesto autorreferencial visto atualmente, embora alguma crítica queira inferir "um sinal de isolacionismo autotélico, de esvaziamento e alienação da atividade artística", há um inegável "procedimento de questionamento subjetivo, de um lado, e de desestabilização das ideias mesmas de obra, de especificidade de linguagem, de autonomia ficcional do artístico, de outro" (p. 143-4). Fraturadas a unidade do sujeito e a universalidade da História, propõe-se pensar o contemporâneo como "poética anacrônica do tempo" que projeta, por sua vez, uma "poética temporal do arquivo" (p. 135) – e é todo um caminho de releitura das escritas do passado que aí se abre, caso se aceite que tais inespecificidades não são "prerrogativas da ficção contemporânea", portanto rastreáveis a contrapelo, dependendo apenas de uma "reformulação do olhar" (p. 174): sugestão que o livro deixa à crítica por vir.

O movimento de entre-lugar do Indicionário está anunciado já na apresentação: como um experimento entre o acadêmico e a vanguarda (p. 13). Se entendemos que a vanguarda é sobretudo um desejo de romper com a autonomia – indissociar linguagem e práxis –, aqui, de fato, nem os ensaios são totalmente autônomos, nem a autoria: não à toa, há um verbete dedicado a discutir o conceito de "Pós-autonomia" sugerido por Josefina Ludmer, onde encontramos também o conceito de an-autonomia atribuído a R. Antelo. Às propostas das vanguardas históricas, calcadas numa confiança na obra resolvida, coube então ao presente acrescentar outras camadas de suspeita e colocar em suspenso as categorias de julgamento e de recepção crítica: um "ajuste de lentes" para pensar "a literatura de um tempo em que os discursos são constantemente atravessados por outros" (p. 174); ou, em outros termos, para repensar a literatura como "campo aberto, por onde circulam conhecimentos os mais diversos" (p. 176).

Cabe então aventar a possibilidade hipotética de que, com as mudanças nos modos de ler e no lugar institucional da literatura, sem mais alimentar ilusões imunitárias a respeito de sua (não-)participação incontaminada na economia geral, os estudos literários possam estar pouco a pouco se tornando "outra coisa ainda por definir" (p. 167), solicitando uma "nova episteme" (p. 222): é nesse âmbito que nomes como Cesar Aira, Mario Levrero, João Gilberto Noll, Fernando Vallejo e Alejandro Zambra aparecem como exemplos que desestabilizam as expectativas do literário (p. 172), com seus "livros em uma época depois do livro" (p. 192), alinhados ao questionamento de uma "noção simplista de realidade" e a uma crescente reflexão sobre os "regimes de verdade" (p. 65), que têm progressivamente seu caráter de ficcionalidade explicitado. Decidir o que fazer com os "critérios de valor herdados da modernidade" (p. 195) é uma das tarefas deixadas pelo livro.

Talvez quem lê esta resenha possa já conhecer as publicações de uma parcela das/os coautoras/os. Que conheça de todos os 14, é improvável. Vale registrar, então, que embora o livro possa trazer algo de já conhecido por textos prévios, o faz não sob o modo do resumo conciso, mas com um filtro de releituras alheias que projeta outras conexões – ao mesmo tempo em que nos sugere uma grande quantidade de cruzamentos teóricos virtualmente possíveis. Vale notar ainda que o diálogo intelectual e afetivo por trás do Indicionário é coetâneo ao da coleção Entrecríticas (2014-2017), publicada pela Editora Rocco sob organização de Paloma Vidal, onde encontramos livros de Diana Klinger (Literatura e ética), Luciana di Leone (Poesia e escolhas afetivas), Florencia Garramuño (Frutos estranhos) e Mario Cámara (A máquina performática, com Gonzalo Aguilar); e também coetâneo de outros volumes que saíram anteriormente pela mesma UFMG, como Expansões contemporâneas: literatura e outras formas (2014), organizado por Garramuño e Ana Kiffer, onde figura um ensaio de Celia Pedrosa ("Poesia, crítica, endereçamento"), um de Garramuño ("Formas da impertinência") e outro de W. Melo Miranda ("Formas mutantes"). Como os últimos títulos antecipam, tais ensaios propunham reflexões detidas sobre a forma – tema, ainda, do livro de Rafael Gutiérrez publicado no mesmo período (Formas híbridas, Rio de Janeiro: Ed. Circuito, 2017); e essa busca de "parentes" de variados graus certamente poderia continuar. Diante disso, o que talvez possamos sugerir desde já, na convergência de todos esses estudos, é que os intercâmbios propostos pelo Indicionário terminam por acrescentar força às trajetórias solo, constelando o vigor de uma linhagem teórico-crítica em franca atividade de (re)criação conceitual.

Voltemos, agora, a um dos primeiros momentos afirmativos do livro: o anúncio de que as obras que esse coletivo de "ensaístas-viajantes" entende como contemporâneas são aquelas nas quais, de modo mais evidente, convergem as perspectivas da memória individual e da memória coletiva, da arqueologia e da psicanálise, do institucional e do íntimo (p. 18). Sua aposta compartilhada, portanto, está em tornar conceitualmente visível uma poética autocrítica e poliperspectivista, "um câmbio perceptivo-reflexivo, apreendido como uma dobra reflexiva sobre o presente, um modo crítico de lidar com o nosso tempo, que nos permita enfrentar a sedução do presentismo – um presente intransitivo, sem diálogo com o passado e o futuro" (p. 157-8).

Após os verbetes, um texto de Raúl Antelo ("Espaçotempo") faz as vezes de posfácio, com sua assinatura arquifilológica mais alusiva que argumentativa, puxando (cronologicamente) mais alguns fios no debate da autonomia, e reatravessando-o, agora enquanto conceito originariamente político - que é então confrontado à dialética de classe no âmbito da autonomia operaia, movimento social italiano de auto-valorização proletária dos anos 60/70, do qual participaram e teorizaram Mario Tronti, Toni Negri e Paolo Virno. Lembremos brevemente que o conceito de multidão reivindicado pelo Indicionário, tal como proposto décadas depois por Negri e Hardt, parte da constatação de uma mutação tendencial na composição de classe, diante de uma organização pós-fordista do trabalho. Multidão, portanto, é um conceito pós-operaísta e pós-industrial de classe, contíguo ao Comum como modo de produção pré-individual: a classe se constitui enquanto classe conforme se comunica, a partir da cooperação afetiva e linguística que equipara trabalhos manuais e intelectuais, promovendo um antagonismo dentro e contra o Império global, sem pretensões ou figurações de externalidade. É também alinhada a este debate que J. Ludmer propõe sua discussão sobre a pós-autonomia na América Latina. Todavia cético, o posfácio de Antelo conclui o livro deixando no ar uma sugestão provocativa (contra Ludmer) de que talvez certa autonomia estratégica seja menos solidária (ideologicamente) ao capitalismo global integrado, pois este acata a perda do valor de distinção artística no mesmo passo em que horizontaliza indiscriminadamente o valor da mais-valia relativa, nivelando a circulação mercadológica sem se preocupar com o que é culturalmente desenraizado. Como de resto, haveria muito a ser discutido em torno das figurações contemporâneas da luta de classes e das relações possíveis entre crítica e mercado, desterritorialização e reterritorialização, sobrevivência e horizonte, estética e anestética, anacronismo e tendência, cultura e identidade, êxodo e autonomia, poder constituinte e potência destituinte: é importante frisar, com isso, que o Indicionário não é exatamente um livro de sínteses e consensos pacificados, apesar de convergir de fato variadas linhas de pesquisa. Por isso, cabe ainda arriscar um balanço final, que possa nos reenviar uma última vez ao debate da pós-autonomia latinoamericana por outro lado.

Indo um pouco na contramão de um funcionalismo próprio à forma-dicionário – uma vez que a função do dicionário é ser a fonte segura à qual recorrer para uma definição inicial; isto é, abrindo mão deliberadamente de um utilitarismo teórico e propondo a si mesmo como "inutensílio" insólito, mas incisivo, o Indicionário parece levar um título especialmente provocativo: a densidade de estudo que perpassa suas páginas termina por enredar a leitura em indícios de que talvez o contemporâneo possa ser melhor entrevisto na comunidade, a comunidade nas práticas inespecíficas, a inespecificidade no arquivo, e assim por diante. Exigindo um "posicionamento exotópico do leitor" (p. 88), ou uma leitora-compositora que acabará retornando – como alguém que remexe com certa ansiedade a caixa de ferramentas, mas descobre outras portas e problemas de harmonia no caminho –, o livro acompanha a expansividade da literatura e da cultura e logo nos faz ver que, na leitura, já não seremos exatamente sujeitos e objetos a interagir em uma troca que promete sentido e inteligibilidade, mas antes focos de atenção e dissonância aos vínculos e modos de atrelamento, fazendo subir à superfície um espesso debate ético e político (coletivo, portanto) que subjazia aos desejos de encontrar definição e exatidão. Há, nesse gesto, algo a destacar: um modo de promover o significado da pesquisa e do estudo que é de fato pedagógico em relação ao desamparo do tempo – e que abre brechas de sentido diante de uma série de perturbações psicopatológicas derivadas de um capitalismo cognitivo muitíssimo material; série essa associada à crescente desvalorização do trabalho universitário em ciências humanas, numa contemporaneidade marcada pelo largo alcance da biopolítica. A microcomunidade que aqui se encena (e se acena!), o faz sem apelar a qualquer identidade, com a força de uma performance que ativa os nervos da teoria em ato, e inquieta.

Em um momento histórico que parece ser de desconfiguração mais geral do lugar formativo da educação socio-filosófica e da discussão teórica, em meio à desilusão de certa tradição cultural humanista e iluminista, e frente a desafios globais incontornáveis, em relação aos quais resta (sem hesitar) continuar a pensar e (principalmente) a compartilhar, é importante dizer que não há neste livro qualquer lamento saudosista de um tempo em que a arte teria sido outra coisa, mais sólida. Nenhuma corrida contra o tempo. O distanciamento conceitual, em perspectiva ruinológica, permite um questionamento sóbrio das decadentes e impotentes estratégias de legitimação e defesa das artes e da crítica; e o diagnóstico é seco. O estratégico, porém, está em saber que tampouco essa crise é específica. Longe de uma dialética da derrota, é a reinvenção do comum que interessa.

Em contrapartida ao espaçotempo que lhe cabe ocupar, portanto, a reciprocidade de leituras que este Indicionário põe em ato (como sua condição de possibilidade) – e que oferece à comunidade acadêmica em forma de "antiantologia" – é igualmente um indício generoso e inteligente do que pode a ficção teórico-crítica hoje: não através da autoafirmação de um valor transcendental do juízo especializado, que reitera a própria legitimidade; também não através de uma concessão apática a um produtivismo utilitário e cumulativo de propriedade intelectual, que vem já com seu certificado de sofrimento assinado; mas sim, talvez, na afirmação de um pequeno desejo, seu manifesto menor: desejo que não é menos nem mais que a urgência de estar à altura da vida em sua época, atravessando (dentro e contra; e se possível de pasamontañas) as tendências tentaculares de captura e subsunção do tempo pelo capital, pondo à prova e à disposição o próprio tempo, dando testemunho da possibilidade de ainda ensaiar um difícil vínculo entre o singular e o comum, nos estratos universitários em que se encontra, se acolhe e se move o incessante trabalho do pensamento. Arriscando perder tempo e nomeando essa necessidade – ao abrir mão do nome próprio –, na nuvem em que se gesta, e no informe das notícias pesadas que nos traz da zona de sombra do contemporâneo, desaba e irriga a legibilidade de algo mais; algo mais que o temporal de hoje; algo até infraleve, feito ainda de letras – e a muitas cabeças e mãos. Condensando uma pedagogia, ensaio geral, o Indicionário não se distrai com pouco, carregando de energia fresca uma linguagem que diz – em coro, na garganta ameaçada – nossos nós a reatar.

 

Submetido em 30/01/2019; Aceito em 27/04/2019


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