FAZENDO VIBRAR SUA VOZ: LITERATURA E O GOSTO DE SI MESMO

FAIRE VIBRER SA VOIX : LITTÉRATURE ET SAVEUR DE SOI

FAZENDO VIBRAR SUA VOZ: LITERATURA E O GOSTO DE SI MESMO[1]

Seloua Luste Boulbina[2]

[1] Tradução de Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha, Professora titular da Universidade Federal de Uberlândia, UFU.

[2] Seloua Luste Boulbina é filósofa, foi Diretora de Programa no Collège International de Philosophie, em Paris, no período de 2010-2016. Atualmente, é pesquisadora (HDR), na Universidade Diderot, Paris 7. Teórica da "decolonização" , interessa- se pelas questões coloniais e pós-coloniais, nas suas dimensões políticas, intelectuais e artísticas. É autora de importantes obras, tais como: Les Miroirs vagabonds ou La décolonisation des savoirs (arts, littérature, philosophie) (Les Presses Du réel, 2018), L'Afrique et ses fantômes, Écrire l'après (Présence Africaine, 2015/ Indiana University Press, 2019 French Voices Award), Les Arabes peuvent-ils parler? (Blackjack 2011, Payot Poche 2014), Le Singe de Kafka et autres propôs sur La colonie (SensPublic, 2008) et Grands Travaux à Paris (La Dispute, 2007); tendo também dirigido numerosas obras, das quais é importante realçar Dix penseurs africains par eux-mêmes (Chihab, 2016), Décoloniser les savoirs (La Découverte, 2012), Un monde en noir et blanc, Amitiés post coloniales (Sens Public, 2009) ou Réflexions sur La post colonie (PUF, 2007). Não menos importante, realça-se o importante trabalho de Seloua Luste Boulbina na edição de catálogos de exposições de artistas renomados e de reflexões sobre obras e elementos estéticos que povoam suas obras.


RESUMO:

Como desfazer as falsas dobras coloniais da racialização? Como (re)encontrar o sabor de si mesmo? O que fazer que seja congruente com seu ser? É pela via das artes e da literatura, das metamorfoses da subjetividade, de seus conteúdos manifestos e de seus pensamentos latentes que procuro pensar, no plano simbólico, uma saída do império e do controle. Como sair disso? E como se sair disso? Essas são para mim questões cruciais, quando se está « no âmbito » da racialização.

Palavras-chave: literatura ; conteúdos manifestos ; pensamentos latentes ; racialização


ABSTRACT:

Comment défaire les faux plis coloniaux de la racialisation ? Comment (re)trouver la saveur de soi-même ? Que faire qui soit conforme à son être ? C'est via les arts et la littérature, les métamorphoses de la subjectivité, ses contenus manifestes et ses pensées latentes, que je cherche à penser, sur le plan symbolique, une sortie de l'empire et de l'emprise. Comment en sortir ? et comment s'en sortir ? sont pour moi des questions cruciales, quand on est « sous le coup » de la racialisation.

Keywords: littérature ; contenus manifestes; pensées latentes ; racialisation


Como desmanchar as falsas e enrugadas pregas coloniais da racialização? Como (re)encontrar o gosto de si-mesmo? O que fazer exatamente com o meu ser, com o meu eu? É, pela via da arte e da literatura, das metamorfoses da subjetividade, de seus conteúdos manifestos e, ao mesmo tempo, de seus pensamentos latentes, que procuro pensar, sobre um plano simbólico, uma saída do império e da dominação, da influência. Como sair disso? E, como se sair? Essas questões são, para mim, cruciais, sobretudo quando estamos sob o âmbito da racialização.

Eu mesma estou à margem da raça de muitas maneiras e em múltiplos sentidos. Trabalho, antes de tudo, com a decolonização e encontro, inevitavelmente, de uma forma recortada, lateral, a questão racial, distinguindo, entretanto, as condições ou definições de países pós-imperiais como a França, a Bélgica ou o Reino Unido e países pós-coloniais como Senegal, ou Angola.

O caso da África do Sul é, aqui, singular, visto que a sua problemática política é similar à aquela dos outros países acima citados.

Objetivamente, a raça representa para mim o estrume – quase impossível de ser analisado – servindo, de fato, para um adubo social (relegação, segregação, exclusão, discriminação, dentre outros). Pode-se, nesse momento, dizer como uma informação entre parênteses, que estrume vem de fumus (fumaça) e fuligo (fuligem). Por outro lado, sabe-se que o estrume, dependendo de suas proporções, pode se inflamar em combustão espontânea. Sabemos ainda que muitas vezes o estrume "engana" o galo em sua fuligem. E eu tenho medo de seus maus odores e de sua horrorosa lixeira...

Há a linguagem da raça e as ideologias da raça. E suas teorizações críticas. Mas "raça" pode ser entendida stricto sensu e lato sensu. Em vez disso, eu abordo a racialização como um processo de diferenciação de desigualdade naturalizada (diferença natural) e / ou historicizada (diferença histórica), que é mais ampla do que a construção de uma "população" em "raça". A racialização, deve-se dizer novamente, tem um duplo impacto sobre o somático e o psíquico – este último plano foi, como sabemos, notavelmente destacado por Fanon, na Argélia. Praticamente, procede por relativa decadência, de-subjetivação e sempre desvalorização. Finalmente, a de-racionalização é a palavra-chave.

É claro que, seja qual for o processo de racialização previsto, ele é, para as pessoas envolvidas, mortal. É por isso que não trabalho na perspectiva de uma análise política das sociedades, mas à luz de uma investigação das subjetivações e de suas elaborações simbólicas, significando que tento pensar em fatos, situações, integrando sua subjetivação subconsciente. Quase como mais uma dificuldade para entender as condições da enunciação, eis porque estou tão interessada na enunciação quanto nos enunciados.

A violência nas colônias é correlacionada à mortificação e à sexualização. Esta é, do lado europeu, uma maneira brutal ou elaborada de matar, não sendo, entretanto, enfatizada o suficiente. Pois a pulsão, no lado imperial, significa, no lado colonial, a restrição. As políticas colonialistas, portanto, quando as olhamos do ponto de vista da subjetividade, confundem os mortos e os vivos, traduzindo uma contradição. Tratar um ser vivo como a morte e tratar um sujeito como algo (e não como um objeto) é uma e a mesma operação. O império, portanto, funciona como uma dominação. Nesse padrão, matar, como uma passagem para o ato, é transformar esse imaginário em realidade. É tirar a vida de alguém que já é, subjetivamente, tratado como não vivo. Silenciar é o complemento simbólico: o silêncio é negar a subjetividade das pessoas que são silenciadas. Não há, então, império, mas negação.

A ironia absurda é que, seja no lado imperial e/ou naquele pós-imperial, as ações são acompanhadas mais frequentemente de uma distância impessoal vis-à-vis dos acontecimentos cotidianos, da ocorrência de uma costumeira indiferença, e pela eliminação das testemunhas irritantes. Porque não há identificação do "racializante" com o "racializado". Mas a identificação é o princípio da conexão social. Nesta conjuntura, o ostracismo, que é uma forma de poder – frequentemente derrotado em um contexto geral mas exercido em particular – é quase um mal menor. Tudo acontece como se estivéssemos lidando, basicamente, com uma "doença" de contato. O sentido pleno de controle é assim revelado na intersubjetividade. Deve-se saber que no século XVII, na linguagem da lei, significava a tomada de terras por expropriação. É uma apropriação pela desapropriação do outro. Este outro é assim expropriado, não apenas legalmente, de sua terra, mas também, e, talvez, acima de tudo, filosoficamente, de si mesmo. Tudo leva a crer que, na dominação, procura-se, voluntária ou involuntariamente, explícita ou implicitamente, transformar este "outro" em marca do primeiro (o que seria um sinal de sucesso imperial). É assim que nascem os problemas de imitação, semelhança, possivelmente de assimilação do "colonizado" pelo "colonizador", do "racializado" pelo "racializante".

A racialização, portanto, torna possível classificar os seres humanos – mais do que os indivíduos – de acordo com um índice de desejabilidade. De um lado, os estereótipos desejáveis e idealizadores, de outro, as caricaturas indesejadas e raciais. A distribuição de desejabilidade e indesejabilidade é uma característica básica de qualquer racialização. A literatura é por vezes a expressão. Lembro-me do susto que senti quando li uma novela de Camus. É um autor que tive muita dificuldade para ler, sem saber por quê. É claro que o "árabe" do L´étranger já é um teste e que nenhum de todos esses Tintin no Congo e outras obras-primas da literatura e do pensamento ocidental são dirigidos aos leitores que nos tornamos. Nós não somos os destinatários, mas os objetos. "La femme adultere" é uma história curta de L´exil et Le royaume (1957). Ela acompanha seu marido, um representante de tecidos, em turnê. Janine, a heroína, é obviamente uma "europeia", assim como seu marido, Marcel. Como diz o autor, é a vida de "um par de franceses isolados no meio dos árabes que fingem dormir, enterrados em suas queimaduras". O olhar de Janine é orientado pelo norte. Divide-se entre agradável e desagradável, desejável e indesejável, atraente e repulsivo.

"Durante a jornada, ela era sensível aos olhos dos homens, sobretudo aquele, afiado de um soldado francês de uniforme que não parava de olhá-la, mas especialmente o do árabe, esbelto e vigoroso, com as mãos enluvadas", que parecia estar olhando "para além do grupo", deixando-a desconfortável e fazendo-a querer ir embora. O único homem que ela realmente conheceu durante esta expedição foi o francês. Quando todos comentam sobre o gênio de Camus em sua descrição do absurdo, personificado pela heroína, eu vi nesta história, apenas a proibição da "raça", como falamos de proibição de incesto, que proíbe toda união e todas as relações sexuais de uma mulher europeia – especialmente pied noir – com um "árabe".

Pois, é claro, o império segue a linha do gênero: o que é permitido aos homens é proibido para as mulheres. Elas supostamente carregam a marca dos homens e ficam "sujas" quando são marcadas pelas pegadas dos homens, que, ao contrário, permanecem "limpos". Isso tem a ver com o desejo das mulheres em geral e com a limitação racializada e racializante de seus desejos, neste caso para os homens. Não homens em geral, mas alguns homens em particular: homens lícitos. A recusa desta legalidade racializada não é um drama, mas uma tragédia. Na novela de Camus, não me identifiquei com Janine. Eu me identifiquei com o árabe.

Assim, eu faço coro a esta grande declaração fanoniana: "Eu peço que eu seja considerado a partir do meu Desejo. (Peau noire masques blancs, p. 252 ). Na racialização, de fato, o ataque é sempre levado a um sujeito desejante, porque seu desejo é necessariamente estranho, porque é um desejo que escapa de toda apreensão. O que lembro primeiro de Fanon é o seu conhecimento em primeira pessoa – que não se confunde com o autoconhecimento. E sua recusa de qualquer conhecimento anatômico. Não há fronteiras entre o pessoal e a política. Colocar-se na análise, em vez de ficar à margem daquilo de que se fala é, para mim, uma ótima lição de descolonização. Sobretudo porque toda a história do pensamento europeu consistiu, por assim dizer, em inventar, teoricamente, "espectadores imparciais" que eram, praticamente, ao mesmo tempo juízes e partidos.

Recusar a anatomia e a dissecação como modelo de análise, constitui para mim, também, um considerável avanço teórico, correlativo ao anterior, porque a anatomia – que é especificamente europeia – historicamente tem se baseado sobre o estudo do cadáver para conhecer o corpo vivo. Este é um viés considerável, comparável à ignorância do funcionamento dos corpos das mulheres no estudo do corpo humano (gravidez excluída). É por isso que Fanon pôde então estar tão atento ao tipo de rigidez cadavérica que atingiu os argelinos quando ele conseguiu encontrá-los em Blida. É por isso, também, que sua verdadeira solidariedade – de fato, tem havido solidariedades de fachada – com verdadeiros argelinos (crustáceos, bicotos, bougnoules, guaxinins e outros melões), se desenvolveu sem se tornar, como tem sido tantas vezes o caso – outra expropriação, mas sim seu auto-proclamado porta-voz. Pelo contrário, ele foi designado como seu embaixador. Exemplo de uma voz.

"E agora vibra minha voz! "(PNMB[3], p.139). Sua experiência vivida, como Fanon a descreve em primeira pessoa, é a de um corpo ferido, com um flanco à esquerda dilacerado (p. 147) e uma subjetividade em pedaços – ou "morto / em pedaços"[4] – marcada por "um conhecimento de terceira pessoa ". Não se trata aqui da lacuna entre o semelhante, mas da lacuna entre si e si mesmo. Difícil sobreviver aos espelhos internos quebrados. Fanon lembra que experimentar, por ser o objeto, um ódio sistêmico, isto é, irracional, é ter, inevitavelmente, em um modo neurótico, o "contato com o irracional" (p.133- 134). Defender tal premissa consistirá, por consequência, em racionalizar o mundo. Isso é libido sciendi. Isso quer dizer libido. É, subjetivamente, um contra-ataque, muito interessante quando se sabe que Freud liga o que ele chama de impulso ao conhecimento e impulsiona o impulso.

A que se ater, de fato, para salvar sua pele, se não ao pensamento racional? Mas o comentário de Fanon sobre as Reflexões sobre a Questão Judaica, de Sartre, encontra a poesia de Césaire, Senghor, Roumanian, Diop. Só existe ela, de fato, que pode, como Césaire observou, devolver o "sabor" de si mesmo. Isso é chamado de "poder" poético. Isso é chamado poder. Como Fanon a apresenta em um diálogo frente-a-frente, a reversão do mundo de cabeça para baixo, pela poesia inicialmente, além da racionalidade, pela magia em seguida, então, abaixo da racionalidade, esse abandono do norte e de seus "raciocínios", aqui é menos uma antítese do que uma defesa.[5]. Tal fato, na verdade, decorre da incompatibilidade entre o eu e a representação que o confronta. É dessa incompatibilidade que é necessário se livrar. Os mecanismos – subjetivos – de defesa procedem assim (segundo Freud de 1915), basicamente, da repressão, da inversão sobre si mesmo, da inversão no oposto, mas também, e sobretudo, da sublimação. As formas são muitas e variadas (regressão, projeção etc).

O que a literatura diz que a teoria não diz? O que os romancistas conseguem colocar no palco, admiravelmente, são os processos psíquicos. A literatura diz a primeira pessoa, mais que a terceira, as desventuras da subjetividade tanto quanto as estruturas coletivas, os fracassos do inconsciente mais do que as vitórias da consciência. Ela diz, em suma, a consciência do racismo, mas subjetivada em vez de objetivada. Primeiro passo de uma libertação interna: saber o que está acontecendo ou o que está acontecendo conosco. A história, a narrativa, é sobre o que existe e o que é silenciado. Por um lado, a literatura expressa o que não pode ser dito sem risco ou perigo. Por outro lado, o que ela está falando pode facilmente ser considerado como uma ficção sem impacto real. É fácil não levar isso a sério. Mas temos muito a aprender com literatura. Assim, "a experiência vivida do Negro", em Peles negras e máscaras brancas termina – não é uma coincidência – por uma referência a um romance de Chester Himes ("Se ele grita, deixe-o ir").

Ele se refere a "O Homem de Cor e a Branca", que começa com uma referência a Um homem como os outros, de René Maran. Jean Veneuse sucede Robert (Bob) Jones. Jean Veneuse, um "abandonado", como diz Fanon? De fato, contradições, ambivalência são marcas que registram os processos de saída da influência e da decolonização, incluindo o eu. O que é chamado sexualidade não escapa a tais processos. Igualmente, não é exceção a escolha do objeto. O desejo da "mulher branca", sexualização colonial às avessas, pode se vingar. Em "raça" e racialização. A autoestima, por um eu prejudicado e desvalorizado, pode vencer se a parceira funcionar como uma "garantia" de "desracialização"[6]. Esta é a questão da bem conhecida Temporada de migração para o norte (1969), de Tayeb Salih (1929-2009).

Mustapha (ou Mustafa) Said, que foi para a Inglaterra estudar, relata sua migração. Apelidado no Sudão, e por oxímoro, "o inglês negro", tornou-se famoso e estimado na Inglaterra. Ele é ao mesmo tempo um sábio e um sedutor.[7] Ele faz o que gosta. O romance aborda o "casamento misto" como, no nível pessoal, uma produção par excellence do império. Por excelência, isto é, unido à excelência intelectual que faz com que a competição intelectual – e às vezes o esporte – seja a própria base da elevação acima da "raça" e fora da racialização. Nesse aspecto, é claro que filosofia, literatura e arte são as terras escolhidas da sublimação. Mas o ascetismo que está classicamente associado a ele se desfaz aqui, sob a pressão dos imperiosos interesses da subjetividade fragmentada descrita por Fanon. O cientista é mais parecido com o jogador de futebol do que com o padre. Está no coração de uma economia libidinal – de desejo e prazer – que é uma dimensão fundamental da economia política. Isso significa, é claro, que estou interessado em afetos. Dor, vergonha, desprezo. E, consequentemente, aos pharmakons (remédios / venenos).

Os fármacos com os primórdios do narcisismo – e a ansiedade da castração – são múltiplos – verdadeiros remédios ou falsas poções. Quem diz narcisismo diz espelhos. Eles aparecem no texto de Salih no quarto. Como dobrar o sonho com realidade, fantasia com experiência? Este mundo dividido e cheio de pretensão que cria o personagem, o autor o encenou de outra forma, entrecruzando e entrelaçando duas histórias, a do personagem, e a do narrador, o amigo do personagem. O segundo, pálido reflexo do primeiro, falha em igualar a intensa erotização do verbo e das relações humanas, que é a principal característica de Mustafa. Se ele também estudou no estrangeiro, ele não correu o mundo, não deixou, realmente, seu país, nem abandonou sua mãe ou, ainda, nem matou sua amante. A negatividade – alguns falariam da pulsão de morte – eventualmente prevalece e o herói desaparece no Nilo. Você não toma banho duas vezes no mesmo rio. A "mulher branca" funcionou como reparação[8]?

Esse romance, como outros, penetra na intimidade como um excedente político. Os retornos do investimento revelam aí uma questão de bricolagem. Porque, como a hegemonia nem desapareceu, nem foi realmente deslocada, apesar de tudo o que foi dito sobre a "provincianização da Europa", não é o Sudão, mas o Reino Unido que apresenta mais questionamentos, oferecendo mais saídas para o personagem-herói de Tayeb Salih. Não seria, nesse caso, um dentre outros (lado a lado), ou acima dos outros ou mesmo em face deles a enfrentá-los (no face a face). Londres é aqui o lugar de valor[9] por excelência. Mulheres são valorizadas. E é aí que você tem que ser avaliado. Doenças – isto é, economias – de grandeza (cidade grande, grande universidade, grande museu, grande mercado, etc) estão inevitavelmente correlacionadas com o que é chamado de "sucesso" (ou "ressuscita") ou " êxito". É claro que, no contexto da decolonização, não é o "reconhecimento" de pessoas (filósofos, escritores, artistas) pelo Norte que constitui uma verdadeira liberdade, porque ainda está suspenso isto é, na dependência desse reconhecimento. É uma insubordinação dos sules[10].

Permanece assim o fato de que a sublimação é aqui uma reparação – singular e subjetiva. É nisso que estou interessada. Deve-se a Kader Attia um trabalho sobre espelhos, objetos quebrados, rostos quebrados, mutilados. É uma reflexão, formalmente artística, explicitamente afirmada, sobre os reparos. Basicamente, o reparo é a prótese[11] (escritos, trabalhos, etc.) seja ela real ou imaginária. É por isso que Reflecting Memory (2016) retoma a experiência de espelho que alguns amputados podem fazer. Um membro fantasma (seu nome indica isso ...), de fato, pode sofrer tanto quanto se existisse. O remédio, comprovado clinicamente, é colocar a pessoa ao lado (não na frente) de um espelho que possa refletir precisamente o braço ou perna real para o mutilado sentir subjetivamente a presença de ambos os braços ou as pernas. E fazer a dor desaparecer. A perda real é momentaneamente compensada de uma forma imaginária, aqui muito eficiente. É o meu sentimento que o artista, depois de ter pensado em seu trabalho em termos de reapropriação, possa então, em seguida, considerá-lo como reparação. Porque se há um problema, tanto pessoal quanto político, individual e coletivo, na decolonização, é o conserto, é a reparação. É também por isso Kader Attia abriu (no sentido pleno do termo) La Colonie, criando um espaço intersticial, que não existia em Paris, em 17 de Outubro do mesmo ano, em comemoração do massacre de Argelinos em 17 de outubro. Resta pensar realmente em amputação, evitando falsas janelas. Esta é a última estrofe da "Experiência Negra" "O aleijado na Guerra do Pacífico disse ao meu irmão: Acomode a sua cor assim como acomodo meu coto; Somos ambos vítimas de acidentes. No entanto, com todo o meu ser, recuso essa amputação."[12]

REFERÊNCIAS

CAMUS, Albert. L'Exil et le royaume. Paris : Gallimard, 1957.

FANON, Frantz. Peau noire, masques blancs. Béjaïa : Talantikit, 2015.

SALIH, Tayeb. Saison de la migration vers le nord. Paris : Actes Sud/Sindbad, 1996.

 

Submetido em 14/07/2019; Aceito em 03/08/2019


Notas

[3] Essa abreviatura corresponde a Peaux noires masques blancs, título de uma das obras de F. FANON.

[4] Em francês a expressão empregada por Seloua L. Boulbina « mort/celée » carrega um jogo de palavras derivado do verbo morceler que, traduzido para o português, seria "despedaçar", "fatiar", "separar". Este, por outro lado, encerra, simbolicamente a palavra mort (morte), deixando entrever em francês o jogo de morte e destruição do corpo machucado pela experiência vivida e que, entretanto, não tem seu sentido transparente em português.

[5] A passagem (p.151) política da negritude ao proletariado, em contrapartida, está em um plano pessoal e subjetivo, um "golpe que não se perdoa.". Conclusão: "Não tenho nada que procurar o universal" (p.154)

[6] Vide citação que Fanon faz de Louis Achille na sua comunicação em "Encontros interraciais", de 1949 (PNMB p.79 ed. Talantikit)

[7] Somente ao voltar a sua vila natal, no Sudão e ao seu continente, o herói tem filhos. No estrangeiro, ele, direta ou indiretamente, assassina suas amantes. Caso ainda de vida e morte, de morte e de vida.

[8] Grafado em itálico pela autora

[9] Idem

[10] O texto apresenta, no seu original, o substantivo sul, grafado no plural, como a indicar as diferentes manifestações, culturas e comportamentos político-ideológicos que podem ser apontados a partir dos muitos países localizados ao sul do globo terrestre, em oposição ao norte – compreendido como colonizador e dominador. Buscando fidelizar a ideia, optou-se pela tradução em português sules ao invés de suis.

[11] Grafado em itálico pela autora

[12] PNMB, p.160 referência à Je suis un nègre/ Home of the brave, filme de Mark Robson (1949)

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