GEOPOLÍTICA DA COMPARAÇÃO: A LITERATURA MUNDIAL AVANT LA LETTRE

GEOPOLÍTICA DA COMPARAÇÃO: A LITERATURA MUNDIAL AVANT LA LETTRE

Waïl S. Hassan[1]

"Orient und Occident sind nicht mehr zu trennen."[2]

Goethe

[1] Professor Titular de Literatura Comparada na University of Illinois at Urbana-Champaign, EUA, e Presidente da Associação Americana da Literatura Comparada (ACLA). https://orcid.org/0000-0003-3294-0577


RESUMO:

A Literatura Comparada sempre esteve consciente de sua localização geopolítica. De acordo com uma história de gênese bem conhecida, o conceito de "Weltliterature" e seu correlato acadêmico, a disciplina da Literatura Comparada, começou no século XIX, com o surgimento do nacionalismo. Mas há outra história de gênese, igualmente expressão de interesses geopolíticos, que começa mais cedo, nos fins do século XVIII, na Espanha e Itália, cujas tradições literárias são entrelaçadas com a literatura árabe e marginalizadas na disciplina de Literatura Comparada americana. Destacando o papel da literatura árabe na formação da europeia, a obra de Juan Andrés é a primeira tentativa de escrever uma história universal e comparada de "toda a literatura"—antes de conceitos de "Weltliterature" e "Literatura Comparada" serem amplamente utilizados.

Palavras-chave: Geopolítica; Weltliteratur; Literatura Comparada; literatura árabe; Juan Andrés


ABSTRACT:

Comparative Literature has always been conscious of its geopolitical situatedness. According to a well-known genesis story, the concept of Weltliteratur and its academic correlative, the discipline of Comparative Literature, originated in the nineteenth century with the emergence of nationalism. But there is another genesis story, equally expressive of geopolitical interests, which begins earlier in the late eighteenth century, in Spain and Italy, whose literary traditions are intertwined with Arabic literature and marginalized in American Comparative Literature. Emphasizing the role of Arabic literature in the formation of European literatures, the work of Juan Andrés was the first attempt to write a universal, comparative history of "all literature," before the concepts of Weltliteratur and Comparative Literature became widely used.

Keywords: Geopolitics; Weltliteratur; Comparative Literature; Arabic Literature; Juan Andrés


Desde seus primórdios, a Literatura Comparada tem consciência de sua localização geopolítica. A própria ideia de "comparação", como sabemos, está enraizada no cientificismo, nacionalismo, e colonialismo do século XIX: isto é, no esforço de tornar o estudo da literatura mais científico, modelando-o em disciplinas como anatomia comparativa e linguística comparativa, a ascensão na Europa do nacionalismo e o conceito de literatura nacional, e a extensão dos impérios europeus pela Asia e África. O nacionalismo deu ao impulso comparativo sua ambiguidade ou ambivalência fundamental, na medida em que, por um lado, a comparação tornou-se um gesto de abertura para os outros, de generosidade cosmopolita que promove a compreensão e a harmonia entre as nações; enquanto, por outro lado, a comparação também se prestava a avaliações etnocêntricas que serviam às vaidades nacionais, muitas vezes projetando normas locais como universais, a partir das quais outras nações inevitavelmente parecem carentes. Em contextos coloniais, a comparação servia para afirmar a superioridade da cultura do colonizador à do colonizado. Em todos esses sentidos, a comparação surge da consciência geopolítica aguda.

Eu gostaria abordar a questão da geopolítica de comparação da minha perspectiva de um comparatista especializado em literatura árabe, uma tradição recém admitida na esfera da Literatura Comparada americana, como expliquei antes (Hassan, 2018). De fato, o árabe desempenhou um papel central em uma das primeiras concepções, senão a primeira concepção, da Literatura Comparada, décadas antes do que a historiografia padrão da disciplina nos ensina.

De acordo com uma história de gênese bem conhecida, o conceito de "world literature" (literatura mundial[3]) e seu correlato acadêmico, a disciplina da Literatura Comparada, começou no século XIX com o uso do termo Weltliteratur por Goethe entre 1827-1832, e enraizou-se institucionalmente com o surgimento da filologia germânica e românica nas universidades alemãs no início do século XIX e a criação de uma cadeira de Littérature étrangère na Sorbonne em 1830. A "escola" americana da disciplina foi influenciada pela chegada de estudiosos europeus como René Wellek, Leo Spitzer e Erich Auerbach nos EUA em meados do século XX, mas a Literatura Comparada americana seria radicalmente transformada algumas décadas depois, abrindo suas portas para as literaturas asiática, africana e latino-americana. Não coincidentemente, durante esta fase mais recente, o conceito de "literatura mundial" tem desfrutado de um renascimento sem precedentes. Mas e se a história realmente começasse mais cedo, no final do século XVIII, antes que o nacionalismo e seu corolário, a literatura nacional, se tornassem o horizonte contra o qual Goethe e outros cosmopolitas formularam suas ideias? E mais ao sul, na Espanha e na Itália, países com histórias enredadas com a presença árabe na Europa durante o período medieval? A imagem seria diferente, e uma de suas consequências seria que a trajetória da Literatura Comparada americana torna-se menos de uma marcha linear e progressiva em direção a uma maior abertura e inclusividade do que uma volta a um entendimento pré-romântico que, apesar das bem conhecidas deficiências (e.g., universalismo eurocêntrico e crença no progresso), enfatizou a interação frutífera das culturas do mundo e o que poderíamos chamar, no idioma crítico de hoje, de seu hibridismo irredutível.

A tentativa de localizar o estudo da literatura árabe na história das práticas acadêmicas associadas à literatura mundial e comparada pode ilustrar o que quero dizer com isso. A literatura árabe tem sido tecida na fibra da literatura europeia desde a Idade Média, embora dificilmente faça parte da história da gênese do século XIX mencionada acima. A presença árabe-muçulmana na Península Ibérica e partes do sul da Itália durante quase oito séculos teve consequências de longo alcance para a cultura e literatura europeias que foram em muitos casos suprimidas, subestimadas ou negligenciadas, exceto onde os árabes e muçulmanos figuram como antagonistas. Diante dessa negação, alguns estudiosos têm realizado grandes esforços para demonstrar até que ponto a interação entre as literaturas árabe e europeia desde o final da Idade Média foi decisiva. Levando em conta esses estudos, pode-se razoavelmente avançar a tese de que, se, segundo alguns, o colonialismo britânico transformou o inglês numa língua indiana ou africana não autóctone (Jeyifo, 2017), então a conquista muçulmana da Espanha e da Sicília tornou o árabe numa língua europeia não autóctone durante o período em que foi, juntamente com o latim, uma língua franca de conhecimento. O que pode fazer essa ideia parecer absurda ou ultrajante é o poder de permanência da dicotomia básica entre "Oriente" e "Ocidente", que Edward Said (1978, 2) identificou como a base epistemológico do discurso orientalista. Esse discurso estava em vigor quando a disciplina da Literatura Comparada começou a tomar forma nos contextos francês e alemão no século XIX, e teve o efeito de marginalizar uma visão diferente da literatura mundial que foi articulada algumas décadas antes em um cenário hispano-italiano.

Como sabemos, os fenômenos não aparecem no momento em que são nomeados; pelo contrário, são nomeados quando sua existência se impõe à linguagem, provocando definição, classificação, regulação discursiva, domínio de um tipo ou de outro. Da mesma forma, a história de conceitos como a literatura mundial e seu corolário acadêmico, a Literatura Comparada, começa avant la lettre, antes que esses termos entrem em circulação e tomem forma institucional. Por muito tempo, acreditava-se que Goethe cunhou o termo Weltliteratur em 1827, e a maioria das discussões da literatura mundial começa com ele, mas o termo foi usado pelo menos cinquenta e quatro anos antes, em 1773, por August Ludwig von Schlözer, embora tenha sido Goethe quem o popularizou (D'haen, 2012, p. 5). Mais importante do que o nome, no entanto, é o fato de que a ideia da "literatura mundial" serviu como o princípio organizador da mais ambiciosa história literária do século XVIII. Juan Andrés (1740-1817), um jesuíta espanhol exilado na Itália, compôs em italiano a primeira grande história comparativa de "toda a literatura", já que a palavra "Weltliteratur" e seus equivalentes em várias línguas ainda não haviam entrado em circulação. Dell'Origine, progressi e stato attuale d'ogni letteratura foi publicado em sete volumes entre 1782-1799 e traduzido para o espanhol por seu irmão Carlos como Origen, progresos y estado actual de toda la literatura, publicado em dez volumes em Madri (1784 –1806). Somente na Itália, o livro foi reimpresso nove vezes em sua totalidade até 1857, além de inúmeras edições abreviadas (Pastor, 2016, p. 293), e na Espanha tornou-se o livro padrão na Academia Real de Belas Artes, em Madri, e na Universidade de Valência, "as primeiras instituições europeias onde a literatura mundial foi ensinada" (D'Haen et al., 2013, p. 2). O autor é, portanto, corretamente considerado na Espanha como o fundador do que mais tarde seria chamado de Literatura Comparada. Andrés foi reconhecido como um eminente estudioso em toda a Europa. Johann Gottfried Herder (1744-1803) visitou-o enquanto viajava pela Itália e escreveu a Goethe sobre ele e suas obras. Acredita-se que Goethe também tenha conhecido Andrés pessoalmente, embora haja alguma incerteza sobre isso.[4] De qualquer forma, podemos ter certeza de que Goethe conhecia a obra magna de Andrés, e podemos especular sobre o papel que as ideias de Andrés podem ter desempenhado no pensamento de Goethe, dado o intenso interesse desse último pelas literaturas árabe, persa, indiana e chinesa, e o papel crucial que essas literaturas desempenham no trabalho de Andrés.

O impulso comparativo é claro na ênfase de Andrés na necessidade de uma história literária mundial que complementaria as histórias nacionais e locais:

Mi intento, tal vez demasiado temerário y atrevido, es dar una perfecta y cabal idea del estado de toda la literatura, cual no creo se encuentre en autor alguno. Tenemos infinitas historias literarias; unas de naciones, provincias y ciudades; otras de Ciencias y Artes particulares; todas en verdade utilísimas para el adelantamiento de los estudios; pero aún no ha salido a luz una obra filosófica que, tomando por objecto toda la literatura, describa críticamente los progresos y el estado en que ahora se encuentra y proponga algunos medios para adelantarla. (Andrés, 1997, vol. 1, 8)

[Minha intenção, talvez imprudente e ousada, é dar uma ideia perfeita e completa do estado de toda a literatura, que não acredito que se encontre em nenhum autor. Temos infinitas histórias literárias —algumas de nações, regiões e cidades, outras de ciências e artes específicas— que são extremamente úteis para o aumento do conhecimento; mas ainda não surgiu um trabalho filosófico que, tomando como objeto toda a literatura, descreva criticamente o progresso e o estado em que se encontra e proponha alguns meios para melhorá-lo.]

Como um jesuíta espanhol exilado na Itália escreve uma história de "toda a literatura" no final do século XVIII? É importante, em primeiro lugar, ter em mente que "literatura" neste momento ainda se refere à cultura escrita ou à aprendizagem, falando amplamente, incluindo filosofia, teologia, ciências e belas letras, e que o escopo do tópico é, naturalmente, restrito ao que era conhecido na Europa sobre o resto do mundo naquela época. Segundo (como Auerbach e Said, um século e meio depois), Andrés compôs sua obra no exílio, após a expulsão dos jesuítas da Espanha em 1767 e, além disso, escreveu em italiano, não em espanhol, em parte em resposta a ataques contra a literatura e a cultura espanholas por terem supostamente causado o declínio da literatura italiana (Tiraboschi). Tais ataques não se limitaram aos estudiosos italianos; o artigo sobre a Espanha na Encyclopédie de Diderot e d'Alembert, por exemplo, afirmava que o país não contribuía em nada para a civilização europeia. Um dos motivos de Andrés, portanto, embora não seja o único para um empreendimento tão grande, era reabilitar a imagem da Espanha e enfatizar sua contribuição à cultura europeia. Para Andrés, essa contribuição consistiu em ter absorvido e transmitido o conhecimento árabe para o resto da Europa. Os comentaristas observaram essa intenção apologista, embora, para ser justo, esse tipo de impulso patriótico ou nacionalista de promover sua própria cultura nacional não seja incomum no trabalho comparativo, seja no século XVIII ou no século seguinte, como já observei.

Mas a coisa notável sobre o escopo do projeto de Andrés —e isso é algo que excede em muito as demandas do motivo patriótico— é a ambição de colocar a Europa dentro de uma história literária mundial concebida como um processo contínuo de interação cultural que leva ao progresso da humanidade. Esta não é exatamente a manifestação hegeliana do Espírito que vê a civilização progressivamente se movendo para o oeste, afastando-se do berço no leste (por um lado, Andrés era trinta anos mais velho de que Hegel), mas é característica do humanismo iluminista, com seu universalismo eurocêntrico e crença na perfectibilidade da humanidade e da cultura. O que diferencia o universalismo espanhol de sua contraparte ao norte é a mesma coisa que diferencia o orientalismo espanhol das variedades britânicas e francesas analisadas por Edward Said: a falta de uma distinção epistemológica subjacente entre o Oriente e o Ocidente, já que o Islã, os árabes, e os africanos fazem parte da história e da cultura espanhola, e não como algo estrangeiro e externo, o Outro contra o qual a Europa se define. Para Andrés, portanto, a "literatura" europeia moderna (tanto no seu sentido amplo e restrito) é inconcebível sem a "literatura" árabe.

Na visão de Andrés da cultura mundial, o conhecimento e a ciência se desenvolvem à medida que são transmitidos de um lugar para outro, desfrutando de períodos de eflorescência seguidos de declínio:

Habiendo empezado a cultivarse la literatura en Asia y en Egipto, no se vio florecer más que en Grecia, donde dio preciosos y útiles frutos en todos los ramos de las Ciencias, de las Buenas Letras y de las Artes liberales. La literatura griega, extendiéndose hasta Roma, hizo nacer la romana, la cual es toda griega en el origen, en la índole y en el gusto; pero, reducida casi unicamente a las Buenas Letras, no se dilató y extendió tanto como su madre. Al decaer la griega y la romana, la propagación del Cristianismo hizo nacer la eclesiástica, que dentro de poco también se obscureció, quedando en Occidente extinguida la luz de los buenos estudios, hasta que compareció otra vez traída de nuevo de las regiones orientales. Los árabes, con sus traducciones y estudios, conservaron en parte y en parte aumentaron las Ciencias de los griegos y, por medio de los españoles, introdujeron en Europa las Naturales, hasta entonces no conocidas; los mismos, cultivando todos los ramos de las Buenas Letras, hacieron nacer en nuestras regiones una nueva Poesía y dieron movimiento a la cultura y perfección de las lenguas vulgares, restituyendo de este modo a Europa la desterrada literatura. (Andrés, 1997, vol. 1, 384-385)

[Tendo começado a se cultivar a literatura na Ásia e no Egito, não se viu florescer mais do que na Grécia, de onde produzia os frutos mais valiosos e úteis em todos os ramos das ciências, belas letras e artes liberais. A literatura grega, espalhando-se por Roma, deu origem à literatura romana, que é completamente grega em sua origem, no seu caráter e no seu gosto. Mas a literatura latina, restrita às Boas Letras, não se espalhou tanto quanto sua mãe. Após a decadência da literatura grega e latina, a propagação do cristianismo deu origem à literatura eclesiástica, que logo se obscureceu. A luz da erudição desapareceu no mundo ocidental até que voltou a aparecer nas regiões orientais. Os árabes, com suas traduções e estudos, conservaram em parte e em parte aumentaram as ciências dos Gregos e, através dos espanhóis, introduziram as ciências naturais na Europa, até então desconhecidas. Eles também, cultivando todos os ramos das Boas Letras, deram origem a uma nova poesia em nossas regiões e melhoraram nossa cultura e nossas línguas vernáculas, restaurando assim à Europa a literatura banida.]

Esta abordagem comparativa permite que Andrés resolva o problema das origens da moderna poesia espanhola e europeia, traçando-as para o intercâmbio cultural na Espanha muçulmana, particularmente na Escola de Tradutores de Toledo (Valcárcel, 2002, p. 260).[5] Como Tomás González Ahola (2008, p. 69-70) escreve, o esforço de Andrés para

avaliar os diferentes constituintes da literatura mundial para compreender e apreciar a evolução do todo (…) levou Andrés a uma de suas teses mais controversas: a importância da literatura árabe para o desenvolvimento da literatura europeia. Nesse ponto, ele se viu em oposição a ideais neoclássicos e românticos. Andrés defendeu o argumento de que a poesia românica se desenvolveu principalmente sob a influência da poesia árabe em vez da latina, com a Espanha desempenhando um papel fundamental como ponte entre a Europa e o norte da África. Esta tese foi baseada em elementos de prosódia e, acima de tudo, esquema de rimas (um elemento que é inexistente em latim, mas absolutamente fundamental para a poesia árabe) e sobre o grande florescimento da poesia nos reinos hispânicos do século XII, que Andrés atribui ao seu comércio constante com os árabes. (…) Andrés rompeu assim com a tradição neoclássica anterior e com o modelo nacionalista emergente. Por um lado, ele minimizou a importância de Roma na transmissão do conhecimento durante a Idade Média, atribuindo o papel-chave aos árabes—uma posição incomum na época. Por outro lado, ele rejeitou a ideia quase mítica da Idade Média como o momento em que o espírito do povo veio para iluminar e moldou a nação através de sua literatura, destacando a importância de uma cultura externa (e, além disso, uma que não era europeia). Ninguém hoje ficaria surpreso com tal tese, mas pressupunha um enorme avanço nos dias de Abbé Andrés, e foi provavelmente uma das razões pelas quais ele é amplamente esquecido hoje.

Compondo sua história monumental durante as duas últimas décadas do século XVIII, Andrés estava preso entre o impulso universalista e sintetizador do Iluminismo, que seu empreendimento enciclopédico incorporou, e a sensibilidade romântica emergente que estava prestes a transformar as ideias europeias de nacionalidade e literatura. A noção universalista de literatura que fornece a estrutura para a história de Andrés é fragmentada em literaturas nacionais, e é dentro dessa fragmentação romântica que a epistemologia da Literatura Comparada toma forma (Gabaldón, 2002, p. 359). Não haveria literatura "comparada" sem literatura nacional (sendo a comparação uma ideia do século XIX), mas talvez houvesse uma espécie de literatura universal ou mundial —ogni letteratura—concebida à luz do Iluminismo: universalista na ambição, necessariamente eurocêntrico em suposições, mas consciente da heterogeneidade da identidade cultural que o nacionalismo romântico, em aliança com o orientalismo colonial, mais tarde encerraria.

É contra o grão do nacionalismo emergente que Goethe falou de Weltliteratur, mas o nacionalismo tornou-se a condição sine qua non da Literatura Comparada como se desenvolveu na França e na Alemanha no início do século XIX, ao mesmo tempo em que o mito do Ocidente se consolida através do que Martin Bernal chama de "fabricação da Grécia antiga" (a ideia de que a Grécia se criou sem influência de civilizações anteriores) e a formação do discurso orientalista. A Literatura Comparada americana se enraizou em uma linha direta de descendência do romantismo franco-alemão: unida à nação e à literatura nacional como repositório de caráter e valores nacionais, e focada nas nações da Europa, especialmente no que era considerado suas tradições centrais: a britânica, a francesa, e a alemã. Quanto à Espanha e Itália, cuja história medieval é inextricável do legado árabe, foram consideradas menos importantes, relevantes apenas no início do período moderno, principalmente por causa das figuras icônicas de Dante, Boccaccio, Petrarca, e Cervantes.

A supressão do passado árabe da Europa fazia parte deste processo de consolidação da identidade "ocidental". Numa época em que a Europa colonial estava afirmando sua ascendência e definindo-se contra os povos não europeus, particularmente contra seu antigo inimigo das Cruzadas, sugerir como Andrés fez que "la literatura moderna reconoce por su madre a la arábiga, no sólo en las Ciencias sino también em las Buenas Letras" (Andrés, vol. 1, 14) [a literatura moderna reconhece como sua mãe a literatura árabe, não só na ciência, mas também nas Boas Letras], foi escandaloso.[6] Andrés foi "severamente criticado" (Furlong Cardiff), mas mais prejudicial ao seu legado foi a negligência. Seu livro monumental nunca foi traduzido para o inglês, e somente o primeiro volume foi traduzido para o francês em 1805 (Pastor, 2016, p. 316). Andrés e sua história literária mundial foram ignorados no resto da Europa durante os séculos XIX e XX e não tiveram impacto nenhum na formação da literatura comparada americana. Com pouquíssimas exceções recentes, Andrés não recebe mais do que uma menção passageira, se tanto, nas crônicas da Literatura Comparada e na quantidade crescente de trabalhos acadêmicos sobre a literatura mundial.[7]

Na Espanha, por outro lado, o legado de Andrés sobrevive e faz parte da controvérsia em torno do passado do país. O trabalho de Miguel Asín Palacios (1919) sobre o Islã na Europa medieval e sua influência na Divina Comédia de Dante faz parte da tradição iniciada por Andrés. Mais recentemente, a supressão nos dois últimos séculos do papel formativo dos árabes e do islamismo na cultura europeia foi o tema do livro de María Rosa Menocal, The Arabic Role in Medieval Literary History: A Forgotten Legacy (1987), no qual ela defende um repensar radical da literatura medieval sem preconceito contra os árabes. Concentrando-se no orientalismo europeu do sul, uma tradição de estudos que não desempenhou nenhum papel no empreendimento colonial do século XIX, Karla Mallette no seu livro European Modernity and the Arab Mediterranean: Toward a New Philology and a Counter-Orientalism (2010) explica como os orientalistas italianos, malteses e espanhóis, ao contrário de seus colegas britânicos e franceses que são o foco do livro de Edward Said, estudaram a história da cultura árabe como parte de seus próprio passado, não como algo estranho ou diametralmente oposto ao da Europa. O próprio Edward Said (2008, p. 10), em sua introdução à tradução espanhola do Orientalismo, reconheceu essa diferença fundamental entre o orientalismo espanhol e o anglo-francês.[8] Vários outros estudiosos europeus e americanos demonstraram como a literatura árabe, e especificamente As Mil e Uma Noites, tem impactado os escritores europeus desde o século XVIII: autores britânicos como Coleridge, Collins, Thackery, Conrad, Wells, e Joyce (Caracciolo, 1988); franceses como Balzac, Gauthier, Dumas, Proust, e outros modernistas (Jullien, 1989 e 2009); além de Goethe e outros romancistas europeus, norte- e sul-americanos (Mommsen, 1960; van Leeuwen, 2018). Tudo isso consubstancia a ideia de que o árabe está entrelaçado no tecido da literatura e cultura europeias desde o período medieval, apesar de sua projeção como um Outro ideal contra o qual a Europa ou o "Ocidente" se define. O escândalo dessa ideia —embora tenha persistido desde a época de Andrés até o presente— é que ela vai contra o modelo difusionista que governou não apenas a Literatura Comparada, mas toda a epistemologia eurocêntrica desde o final do século XVIII.

Que a geopolítica se sobreponha à forma da Literatura Comparada tanto na escala temporal de algumas décadas quanto em termos macro-históricos não deve ser surpresa, embora seja instrutivo considerar o que entra na esfera de comparação, ou seja, o que atinge a condição de comparabilidade e reconhecimento —e como, por que, e sob quais circunstâncias isto pode acontecer. Também revelador é considerar o que fica nas sombras, fora do campo da comparação. A aparição, o desaparecimento e o reaparecimento do árabe na história de comparação nos últimos duzentos e quarenta anos oferecem um exemplo dramático disso.

REFERÊNCIAS

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Submetido em 20/07/2019; Aceito em 13/08/2019


Notas

[2] "Oriente e Ocidente não podem mais ser separados." Citado em Mommsen (311). Todas as traduções nesse artigo são minhas, a não ser que uma tradução seja citada na bibliografia.

[3] Uso "literatura mundial" como tradução direta do termo inglês "World Literature", que por sua vez traduz o alemão "Weltliteratur" (embora existam diferenças importantes em seus significados). Entendo pelo meu estimado colega José Luis Jobim que em português se diz "literatura-mundo," termo proposto por Helena Carvalhão Buescu (2017). Além de trocar a estrutura adjetivo-substantivo nos termos alemão e inglês por outra composta de dois substantivos, "Literatura-mundo" me parece ser uma tradução do francês "littérature-monde", que, tanto quanto sei, remonta apenas ao manifesto de 2007 "Pour une littérature-monde en français," e se refere apenas às literaturas escritas em francês, um conceito muito diferente daquele de Goethe. Já que me preocupo com a genealogia dos conceitos em alemão e inglês, e não em francês, uso "literatura mundial". Agradeço a Antonio Barrenechea por me indicar que Monteiro Lobato já havia usado esse termo na sua tradução do livro de John Macy, The Story of the World's Literature (1925), como História da literatura mundial (1941).

[4] No "Estudo preliminar", os editores de Orígenes afirmam que Goethe visitou Andrés em Mântua (García Gabaldón et al. lvii). Em outro contexto, no entanto, um dos editores, Santiago Navarro Pastor, põe em dúvida a possibilidade de tal encontro (Pastor 310-12). Para uma breve biografia intelectual de Andrés, veja García Gabaldón 2017.

[5] A tese foi, de fato, primeiro avançada em 1581 pelo erudito italiano Giammaria Barbieri em Dell'origine della poesia rimata, embora o livro não tenha sido publicado até 1790. Sobre isso e sobre Andrés em relação aos estudos árabes na Espanha do século XVIII, ver Monroe (39-45).

[6] Por exemplo, em Introduction to the Literatures of Europe in the Fifteenth, Sixteenth, and Seventeenth Centuries (1837), Henry Hallam confia em Orígenes ao longo de seu livro, mas invariavelmente censura as avaliações de Andrés das contribuições árabes (ou "sarracenas"). Sobre a influência de Andrés em Hallam, veja Mombelli.

[7] Algumas histórias da disciplina mencionam Andrés apenas de passagem. Em um ensaio clássico sobre a história da literatura comparada, René Wellek descreve Dell'origine como "um dos repertórios mais impressionantes de todas as literaturas… sem senso de fluxo narrativo e pouco de continuidade" (Wellek 1970, 25)—uma avaliação injusta na medida em que não leva em conta o escopo do trabalho e nega a Andrés as mesmas qualidades que o título do livro anuncia. Quando nos lembramos de que para Andrés "Literatura" se referia a todo conhecimento registrado, que ele divide em letras e ciências naturais e eclesiásticas (Gabaldón et al., lxi), fica claro que "fluxo narrativo" e "continuidade" não eram provávelmente seus objetivos primários, apesar de sua intenção, declarada no título do livro, de descrever "a origem, progresso e estado atual de toda a literatura". No mesmo parágrafo, Wellek elogia a Storia della letteratura italiana de Girolamo Tiraboschi como uma obra "ainda admirada por sua precisão e riqueza de informações", e descreve a história da poesia inglesa de Thomas Warton como sendo "permeada por um novo espírito. Não poderia ser escrita sem a ideia de progresso, sem um novo interesse tolerante na Idade Média, e sem uma ideia (ainda que esquemática) de desenvolvimento literário" (Wellek 1970, 25)—isto é, tem o "fluxo narrativo" e "continuidade". Em seu julgamento sobre os três historiadores literários, Wellek mostra uma clara preferência por histórias literárias nacionais em vez de uma história universal que tenta a tarefa muito mais difícil de descrever como tais tradições interagem. No entanto, Wellek na conclusão do mesmo artigo afirma que a Literatura Comparada "prevê um ideal distante da história literária universal e da erudição" (36). Ainda mais surpreendentemente, como observa Pedro Aullón de Haro com indignação indisfarçada, Wellek menciona Andrés apenas duas vezes e, de passagem, em sua altamente influente A History of European Criticism: 1750-1950 (em vol.2, nota de rodapé, p. 34; e apenas de sobrenome em um enunciado entre parênteses no volume 3, p. 4)—sintoma, de acordo com Aullón de Haro, da animosidade de Wellek para com a cultura espanhola no conjunto (Aullón de Haro 18-20).

[8] Sobre o orientalismo espanhol, ver Monroe.

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