DESENHO E DISFARCE EM AUGUSTO DE CAMPOS

DESENHO E DISFARCE EM AUGUSTO DE CAMPOS

Kenneth David Jackson[1]

[1] Professor Titular da Yale University.


RESUMO:

Na obra poética, Augusto de Campos disfarça o significado verbal ao adotar técnicas ou estratégias de composição que desafiam a capacidade de compreensão do leitor, chamado a descobrir a chave da leitura diferente da norma. O desenho estrutural do poema concreto implica uma leitura em que o conteúdo visual, sonoro e estrutural seja muitas vezes o fator dominante para a compreensão da composição.

Palavras-chave: desenho, disfarce, redimensionamento, estrutura, linguagem


ABSTRACT:

In his poetry, Augusto de Campos disguises meaning by using techniques or strategies of composition that defy the reader's ability to understand a poem, dependent on finding a key to a reading different from the norm. The structural design of the concrete poem implies a process of reading in which the verbal, vocal, and visual content often determines understanding of a composition.

Keywords: design, disguise, re-dimension, structure, language


Na sua obra poética, Augusto de Campos disfarça o significado ao adotar técnicas ou estratégias de composição que desafiam a capacidade de compreensão do leitor, chamado a descobrir uma chave da leitura diferente da norma. O desenho estrutural do poema concreto implica uma leitura em que a interação do conteúdo visual, sonoro e escrito é o fator decisivo para a compreensão da composição. Comenta Mary Ellen Solt (1970, p. 60) na introdução à sua antologia que o poema visual, novo produto num mundo inundado por produtos novos, não pode senão refletir o seu ambiente, sendo o poema uma palavra desenhada num mundo desenhado. Aproveitando-se dessa frase, Jamie Hilder (2016, p. 114) questiona a própria natureza da leitura quando se trata de um poema desenhado: os nossos hábitos de leitura impedem a compreensão. Um poema visual parece conter segredos, aparecendo ao leitor como passagens escurecidas ou eliminadas num documento oficial. Ao comentar o elo entre a poesia concreta e o mundo do design, Gonzalo Aguilar (2005, p. 114) repara que nem todos os tipos de design são lidos da mesma maneira. O conceito de que o signo seja imediatamente significante, por ser imagem ou desenho, é trabalhado pelos poetas para criar uma diferença, abrindo aporias tanto na mensagem quando na sua articulação.

Desde a série poetamenos (1953) aos "Clip-Poemas" em CD-ROM do livro Não (2003), Augusto de Campos emprega técnicas que, pela sua composição e estrutura, desafiam o ato de leitura. Para destrinçar o significado do poema, no caminho a uma maior compreensão, o leitor precisa aprender e praticar diversos tipos de leitura, que aumentam a participação na linguagem e na construção dos poemas. O poeta procura sempre novas formas de desenho, na construção material do poema, e novos materiais que redimensionem o sentido, tais como uma fonte fora do comum, colocação geométrica de fonemas, justaposição caleidoscópica, superimposição de imagens ou letras, ou espacialização que diverge das normas de composição tipográfica. O crítico Manuel Portela comenta sobre a maneira em que o poema concreto está organizado:

[O] jogo probabilístico com semelhanças e diferenças fonéticas e semânticas fica espalhado na página, de tal maneira que anuncia o fato de que um texto sempre contém as instruções para a sua própria leitura. Consequentemente, os procedimentos combinatórios que geraram o código retórico e tipográfico do poema se tornam visíveis na sua superfície. Concluído, o poema é uma escrita significante, mesmo que essa escrita não esteja inteiramente legível […][2]

Todas essas composições poéticas ultrapassam uma leitura apenas fonológica ou discursiva, ou até morfológica, ao incorporar à leitura do sentido outras dimensões, herança dos movimentos das vanguardas históricas, resumida pelo termo joyciano, "verbivocovisual," hoje em dia chave de ouro da poesia experimental.

Numa entrevista de 1999, Augusto comenta o papel diferente da palavra nas suas composições:

"[...] um redimensionamento estrutural do poema. Essa reestruturação começou a ser trabalhada de vários modos pelas vanguardas do início do século ... Nesse contexto, a palavra não deixa de ter lugar, mas tem que ser reciclada, entrando em contato direto com a dimensão não-verbal, as imagens e os sons, e passa a ser interdisciplinar, intertextual e muitas vezes interativa, além de projetar-se em parâmetros materiais mais amplos, que devem levar em conta critérios de forma, cor, espaço e movimento...". (Daniel, 1999)

Além de levar a palavra a dimensões não-verbais, Augusto procura disfarçar as leituras possíveis, alterando a própria apresentação dos materiais para que o leitor tenha que descobri-las, através de uma participação maior na compreensão de sua construção. O poema disfarçado, vale dizer, fica à vista, de fácil alcance para o leitor atento. Uma aluna universitária comenta a dificuldade da leitura do texto concreto:

Claro que as curvas, enganando o nosso olhar, têm o poder de embaralhar nosso senso de direção e nos afundar ainda mais no labirinto. Mas o que dificulta é, ao mesmo tempo, o que não se revela por completo. As dobras permitem articulações. As curvas que enganam o olhar, ao mesmo tempo que atordoam, apontam para aquele outro caminho do "não": o das múltiplas possibilidades de saída. Aquelas que não foram negadas: afirmações em potência.[3]

Portela indica onde se deveria olhar para descobrir a estrutura significante do poema:

A sua função consciente e subconsciente pode ser observada antes de e além do nível da palavra: no primeiro caso nas aglutinações, prefixos, infixos, sufixos e vários tipos de fragmentação tocando lexemas, morfemas e até grafemas; no Segundo caso, a um nível maior de unidades sintáticas, frases e textos. Nesses procedimentos o nível semântico e ideológico da linguagem está sujeito a uma arte combinatória que, num único ato, destrói e reconstrói a textura de inferências e recorrências que sustenta a coerência discursiva. A poética concreta dá forma à materialidade estrutural e psíquica do signo, ao ligar as suas características linguísticas formais à mentalidade que processa essas qualidades. Assim, é uma poética com uma linguagem falada e escrita, tanto quanto uma poética da escuta e da leitura.[4]

No seu ensaio "The Concrete Historical", Roland Greene (1992) emprega o termo "poesia material" para distinguir toda uma maneira transhistórica de escrever poesia, da perspectiva da forma e apresentação material, com exemplos encontrados na poesia renascentista, da coleção da biblioteca de Harvard. É um fazer poético de larga data que põe em questão a sua própria forma, questiona como se produz um significado combinando sons e formas e nos confronta com uma experiência atual e imediata de leitura. Estabelecendo a consciência da fisicalidade na poesia naquela época, explica Greene, "a geração de poetas ingleses nascidos por volta de 1550 prefigura o grupo Noigandres que surgiu na década de 1950, fundada sob um princípio de assimilação estratégica—figurativamente, digestão ou deglutição—de sabedoria e ideologia." Insatisfeitos com a simples ênfase na forma, esses poetas preferiam uma nova configuração, precedente do verbivocovisual de Joyce, dos experimentos gráficos de Mallarmé e do conceito de deglutição do manifesto antropófago brasileiro. A chave da poesia "material", para o grupo de Noigandres, distanciando-se da produção anterior, nada tinha a ver com o decorativo, mas sobretudo com o movimento e ritmo da composição. Augusto de Campos denota as qualidades principais que o grupo procura expressar: a brevidade, a articulação sintática, a redução da linguagem a um substrato minimalista. É uma tentativa de radicalizar até as invenções radicais das vanguardas histórias, com o fim de provocar uma regeneração da linguagem propriamente dita, purificada das peripécias do emprego quotidiano e literário. Ao mesmo tempo, a obra sai de uma revisão crítica da função poética, em que opera uma "colisão e justaposição" do fazer poético do passado e do presente, ou seja, uma visão sincrônica da poesia material existente de qualquer época. Nesse sentido, como aponta Greene, os exemplos da tradução da poesia material, visual ou sonoro na poesia ocidental servem de referência para os poetas de Noigandres:

A sequência de poetas pós-Mallarmé, para os quais Paz e Pignatari são portavozes importantes, estão conscientes na maioria das vezes dos seus antítipos renascentistas. A poesia material pós-moderna cultiva uma consciência de – às vezes quase uma atenção estudiosa a – como os seus antecedentes distantes lutaram contra a ordem literária e cultural do seu tempo.[5]

Disfarce na poesia barroca

No ensaio "A reinvenção do espelho: reflexos da época barroca na Poesia Experimental", a poeta experimental portuguesa Ana Hatherly (2016, p. 161) discerne na prática de desenho e disfarce uma herança barroca:

Quando os experimentalistas portugueses se comprometeram a defender a poesia da época barroca [...] fizeram-no em plena consciência [...]. Assumiam, ao mesmo tempo, outra redescoberta, a dos valores operatórios da poética barroca: a sábia manipulação da linguagem, em que o carácter performativo da palavra, da imagem e da retórica em geral é concebido a partir de uma imensa criatividade conceptual, e em que o profundo sentido do acto criador como jogo se alia a uma aguda percepção do valor da forma [...].

O que os poetas barrocos e os experimentalistas contemporâneos têm em comum será, pensa Ana, "um novo olhar que retoma, retoca, intensifica e até parodia, de uma maneira extremamente criativa, toda uma herança cultural." A referência ao barroco, para a teórica portuguesa, liga a poesia experimental a uma tradição de vanguarda que vira "uma metáfora da variabilidade. A vertente lúdica" (p. 161). O ensaísta John Picchione ainda vê o exemplo do barroco na conexão entre decepção e ilusão, evidência da condição emocional e epistemológica da época. Consoante com o exemplo barroco, o uso do disfarce e da ilusão põe o leitor contemporâneo de sobreaviso quanto à possibilidade de criar qualquer modelo externo definitivo ou confiável do mundo:

A decepção envolve todos os aspetos da existência humana. Separa a escrita de qualquer noção ingênua de mimese ... A poesia está constituída de signos ilusórios na forma de "fábulas", sendo imagens vazias, ou simulacros. A poesia é uma ferramenta que nos põe em alerta contra as decepções insidiosas do mundo.[6]

Da mesma forma, afirma Picchione que "a decepção visual é traço fundamental inseparável da estética barroca [...] na arquitetura e nas artes visuais. O visitante é obrigado a formar uma ilusão mental da dimensão de um objeto que não existe na realidade" [...].[7] Nessa arte de decepção, nas poesias interdisciplinares de Augusto, substitui-se o visitante nas galerias ou nos palácios pelo leitor de textos. Em ambos os contextos, segundo Picchione, a decepção faz parte de uma evocação do "maravilhoso", por meio do uso da ingenuidade formal, wit (sagacidade), do conceptismo e da metáfora. Para esse processo funcionar, ainda observa Picchione, "a acuidade da forma depende das conexões entre as palavras e as coisas."[8] Dali, é só um passo para chegar ao isomorfismo operante na poesia do Augusto. Na ampla visão da Ana Hatherly (2016, p. 163), as raízes da concretude poética remontam aos tempos dos caligramas gregos e ao gosto de ler as estruturas, dos quais Ana considera os experimentalistas descendentes.

Um recente estudo da invenção do conceito de barroco literário faz lembrar da posição de Haroldo de Campos a favor do barroco: "No entender de Haroldo de Campos, o barroco no Brasil não se resume a um estilo artístico e literário do seiscentismo, mas uma característica da formação brasileira, fenômeno que imprime peculiaridade até hoje em nossas artes, letras, cultura e vida social (Bettiol, 2008, p, 482)." O argumento do Haroldo é retomado pelo mineiro Affonso Ávila, que vê na arte barroca "[...] uma escrita literária nova que retomava no entanto, como pêndulo e estímulo, as desinências barroquistas, proporcionando, principalmente na ficção, o boom impactante de uma linguagem neobarroca, conquanto vigorosa e de função modernizante (Apud Bettiol, 2008, p. 479)."

Retomando uma herança cultural

Os experimentalistas concretos não se limitam a ler e criar estruturas, pois nas suas experiências formais mantêm sempre um distanciamento crítico que procura criar um novo jogo de relacionamento entre palavra e forma. No texto da "Symphosophia" de Yale, Augusto distingue claramente o procedimento da escola concreta da prática neobarroca em geral, muitas vezes ligada à poesia hispânica ou latino-americana, mais um "rótulo para ecletismos" do que uma procura da experimentação permanente, como quer o poeta. Para uma compreensão da distância crítica assumida pelos poetas concretos, é sobretudo interessante considerar a questão epistemológica, e até emocional, levantada por Picchione. Em poemas como "Psiu", "Memos", "Tudo está dito," "Viva Vaia" e "Pentahexagrama", para citar alguns exemplos, há uma atenção à qualidade kitsch do fundo cultural e literário do momento, um comentário crítico sobre os conceitos de época e sobre a própria estética, quadro que reflete a consonância, em termos de uma produção brasileira, entre a poesia concreta e a perspectiva de um movimento cultural como a Tropicália. Ao rigor de uma elaboração neobarroca dos materiais, o poeta concreto acrescenta outro traço fundamental da visão barroca: incorpora na estrutura das suas obras a noção da decepção insidiosa da realidade e da impossibilidade de propor qualquer modelo definitivo de realidade. No relacionamento entre as palavras e as coisas, entra em jogo uma aguda autoconsciência da decepção, da ilusão e a percepção de uma certa circunferência epistemológica, aplicada ao contexto brasileiro e à própria modernização, refletida no poema.

Propomos uma conexão entre a tensão isomórfica, que rege a estrutura do poema concreto, e a instabilidade da leitura encontrada na estética barroca, que põe em discussão a operação do texto de uma maneira comparável à observação que Picchione faz sobre Giordano Bruno: "O universo é todo centro, ou o centro do universo está em toda a parte e a circunferência não está em parte alguma, embora seja diferente do centro, ou que a circunferência está em toda a parte, mas o centro não se encontra, porque se distingue dela."[9]

Levando essa ideia ao poema concreto, o leitor terá o trabalho de descobrir aonde reside precisamente, na estrutura verbivocovisual, o núcleo ou centro poético, frente ao desafio de uma circunferência que está em toda a parte, ou de um centro que não se camufla.

Alguns exemplos conhecidos na poética de Augusto de Campos apresentam formas variadas de desenho e de disfarce. Essas podem incluir a camuflagem, o trompe d'oeil, a arquitetura gráfica e visual, a composição combinatória e audiovisual, a imagem, a cor e o emblema, a sequência, a variação tipográfica, o anagrama, a superimposição, a permutação, a proporção e a música, entre outras. As formas de disfarce estão indicadas muitas vezes pelo título geral de uma coleção de poemas, como o caso de "Enigmagens", "Equivocáblos", ou "Colidouescapo", onde o uso de código, a representação gráfica inusitada, o elemento escondido ou suprimido, o acróstico, a colagem, a quebra-cabeça e o jogo de sentido, da palavra ou da imagem são encontrados. Embora muitos dos poemas tenham leituras discursivas escondidas ou emaranhadas na estrutura, o núcleo do significado permanece estrutural e não textual.

Técnicas de desenho e disfarce nos poemas

Os poemas de Poetamenos aparentam uma fragmentação gráfica e fonêmica, produtos de uma colocação geométrica espacializada, com unidades sintáticas indicadas por cores diferentes. Assim como a "melodia de timbres" do compositor Anton Webern, klangfarbenmelodie, citado na apresentação, as cores que distinguem os vários níveis semânticos diferentes representam tons musicais, fazendo do poema igualmente uma partitura. O leitor precisa saber ler as estruturas e separar os fonemas, que pertencem a múltiplas unidades de sentido fragmentadas.

Já o poema "tensão" é caracterizado principalmente pelo rigor geométrico e pelo jogo semântico. No centro de um quadrado, o poeta coloca a palavra "ten/são", formando um desenho com "tem" acima e "são" embaixo. O poema emprega mais seis palavras nasais de seis letras cada, divididas ao meio como "ten/são", com três letras acima e três embaixo. O poeta deixa os cantos superior direito e inferior esquerda do quadrado vazios. Os seis pares formam assim dois triângulos, um à esquerda e outro à direita do eixo do quadrado, o "ten/são". No canto superior à esquerda há a leitura "com/som" e no canto inferior à direita a leitura "sem som". As outras unidades são palavras de duas sílabas separadas para parecer duas palavras, enriquecendo a leitura e marcando a dupla tensão morfológica que existe nessas palavras. O poema cria leituras dialéticas à base da instabilidade entre palavras e quase palavras, e pela aproximação fonológica que sempre sugere leituras divididas, ou por sílaba ou por palavra, e que pula de par em par. O leitor tem que descobrir o que está faltando e o que está escondido, nas sílabas enganadoras.

atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodiplastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveravivaunivoracidade
city
cité

O poema "Cidade" é composto de 29 prefixos de palavras que acabam com "cidade", em ordem alfabética, começando com "atro" e indo até "vora". Para o leitor brasileiro, a sequência deve lembrar o jogo do bicho, que usa vinte nomes de bichos, de avestruz a zebra, cada bicho representado por cinco algarismos numa escala de cem. O efeito visual do conjunto compridíssimo do poema domina quase completamente a recepção pelo leitor, tornando improvável e difícil a identificação da sequência de prefixos que forma o poema, frente à massificação do palavrão gigante. É uma palavra caleidoscópica, publicada em papel desdobrável que transborda o livro e se estende no espaço. O poema aparece à primeira vista como uma cadeia de letras aleatória, que continua até a sequência final que forma a palavra "cidade". O leitor precisa descobrir a chave, podendo reconhecer e separar os prefixos para depois juntá-los novamente para ensaiar uma leitura, que tende à velocidade. Na leitura, o poema perde o seu efeito visual no caleidoscópio dos prefixos, que parecem tropeçar um sobre o outro enquanto a leitura acelera. A descrição e crítica da cidade moderna está à flor da pele, porém escondida do leitor nos prefixos, desde a "atrocidade" do começo até a "voracidade" do fim. Cada prefixo caracteriza a metrópole moderna, com uma energia desenfreada.

O poema "Olho por olho" tem a forma de um sinal de trânsito, de triângulo invertido, sinal internacional para ceder o caminho. Neste poema, o poema-triângulo apresenta 91 imagens em 20 filas, começando com uma imagem muito pequena no fundo, colocada no ponto do triângulo, no topo de uma pirâmide, aparentemente distanciada do leitor, distante de três imagens grandes que ficam em primeiro plano. As três pequenas imagens são sinais de trânsito – inclusive "proibido virar à esquerda" – seguidas de 87 imagens, principalmente olhos, mas em cada fila há também não-olhos, às vezes lábios e, notoriamente, a porta redonda de uma máquina de lavar. Sabe-se que essas imagens são recortes de revistas de época, sendo os olhos de personalidades conhecidas, na política, mídia e cinema. O tema, como no poema "cidade", trata de devoração, questionando a ética bíblica de "olho por olho" com uma sequência de olhos anônimos e desconexos. O poema-triângulo apresenta a decepção visual dentro de uma estrutura internacionalmente divulgada e entendida, mas no caso sutilmente alterada. O leitor deve interpretar a forma de sinal de trânsito, ler as imagens e adivinhar o segredo do recorte de olhos.

O poema "Código" é labirinto que produz vertigem, e que põe em questão a circunferência de significados. Usando uma série de círculos e semicírculos, o poema sobrepõe todas as letras da palavra "Código" para formar uma imagem circular densa. Todas as letras têm a forma circular, exceto "d" e "i", indicadas por uma faixa vertical que atravessa os grandes círculos. O leitor tem que traçar as letras componentes do "código" para poder chegar a uma leitura, que nunca será linear, mas sempre vertiginosa. Aprendendo a ler dessa maneira, o leitor vai aceitar que não existe centro. Cada letra gira ao redor das outras, formando um conjunto dinâmico em movimento, na coexistência de todas as letras. O centro está em toda a parte.

O poema "Tudo está dito"[10] apresenta uma superimposição de texto, em que o branco tende a desaparecer no preto, por sua vez cor interrompida pelo branco, como para enfatizar que não há nada de original ou novo, porém a mensagem eclesiástica está comunicada de uma maneira nova. O leitor enfrenta a impossibilidade de reconhecer qualquer leitura ou mensagem definitiva na colagem-sobreposição de frases. Tem que extrair da colagem as máximas, frases-feitas, que fundamentam o tema: "Tudo está dito, tudo está visto, nada é perdido, nada é perfeito, eis o imprevisto, tudo é infinito."

No "Pulsar", a manipulação da fonte é a chave da leitura, envolvendo o emprego de símbolos – estrelas e bolas de tamanhos diferentes, que tomam o lugar de certas letras. A ausência dessas letras e a sua substituição por símbolos produz uma leitura estranha e alienada. O leitor precisa ligar o símbolo, e por implicação a letra substituída, à ideia da luz do pulsar. A leitura está dividida em diversos planos, passando das letras estilizadas aos símbolos e à luz. A leitura passa pelos espaços entre as letras e contra o fundo preto, alternando entre luz e escuridão: "Onde quer que esteja, em marte ou eldorado, abra a janela e veja o pulsar quase mudo, abraço de anos luz que nenhum sol aquece e o oco escuro esquece."

"Viva Vaia" é exemplo de trompe d'oeil e inversão de significado, pela aproximação de formas geométricas, consistindo de seis triângulos e duas linhas retas, ao mesmo tempo coisas materiais e letras. Visto e lido em termos de forma geométrica, o poema está dividido ao meio pelas linhas verticais: à esquerda há três triângulos, dois do quais têm a mesma atitude (base para cima); e à direita há três triângulos, dois dos quais têm a atitude oposta (base para baixo). E o poema está dividido também por uma linha horizontal, com três triângulos acima da linha e três abaixo. Há também uma oposição de cores: na parte superior as letras são pretas contra um fundo branco; embaixo há letras brancas contra um fundo preto. O conjunto aparenta a forma de uma escultura, como se a parte embaixo fosse base para as peças no ar livre (branco) acima. É um perfeito espelhamento, como se metade fosse real e a outra metade o seu reflexo, como numa fotografia ou espelho. O poema tem a sua origem numa famosa performance de Caetano Veloso em São Paulo, quando foi vaiado e respondeu à altura, contestação celebrada pelo poema.

"Pentahexagrama" apresenta uma ilusão de formas, operada com astúcia, contra a mimese, sendo um plagiotropismo das convenções musicais. O leitor acha que vê a pauta musical, com notas, mas o conjunto incorpora uma linha a mais. O leitor, à base do interesse do compositor John Cage na filosofia oriental, precisa recorrer ao zen para começar a decifrar o significado simbólico das linhas, a ser encontrado na filosofia chinesa i-ching. O i-ching mobiliza um jogo e sistema de fortuna, distinguindo entre linhas integrais e linhas quebradas. Joga-se, por exemplo, três moedas para saber onde caem as linhas integrais e as quebradas, para depois consultar o significado do resultado no livro do i-ching. No esquema do poema, as três linhas superiores significam "mudança" e as três inferiores "revolução". As notas na pauta musical soletram, em chave de sol, "C" "A" "G" "E", completando a homenagem ao compositor que revolucionou o emprego de sons e silêncios na música contemporânea.

"Criptocardiograma", poema interativo, repete imagens da cultura popular, como as encontradas em folhetins, para iniciar um jogo lúdico no tema da paixão amorosa, visível nos corações, dados, mãos com caneta e nas seis facas. O coração e o dado, em cima, resumem o tema do acaso em assuntos de amor. O leitor participa num verdadeiro salão de jogos, arrastando letras, escolhidas de uma coluna à esquerda, para a posição certa, correspondendo aos símbolos certos. Ao completar o desenho e a leitura, o coração começa a bater, com som e movimento.

Poema interativo: http://www2.uol.com.br/augustodecampos/semsaida.htm

"Sem saída" é um poema metabarroco, com múltiplos fios de letras como se fossem linhas de costura sobrepostas, ou caminhos tortos escamoteados. O leitor emprega o mouse para descobrir os ínvios caminhos de significado, inclusive pelas suas cores, que, no seu conjunto, formam o poema. Musicada e cantada pela artista Adriana Calcanhotto (2008), a leitura do poema é revelada e o seu significado destrincado:

Visualizar a leitura em forma escrita é elemento estrutural num poema interativo de Augusto de Campos, tanto na versão eletrônica na tela quanto na impressa no papel. "Sem saída" ("no exit") (2000) é uma meditação material sobre os processos labirínticos da leitura. Na versão eletrônica, os leitores precisam ler sete frases em sete momentos sucessivos. Casa frase se revela gradualmente enquanto os leitores movem o mouse à direita. As frases aparecem letra por letra, sem divisão entre palavras, formando linhas recortadas a cores pela tela preta. Mover o mouse à esquerda faz com que as letras desapareçam. Uma vez revelada uma frase inteira, procede-se à próxima frase, clicando o mouse. Chega-se à próxima etapa textual, seguindo os mesmos princípios, a única diferença sendo a cor e o padrão das letras na tela. Clicar o mouse depois da última etapa lança as sete frases simultaneamente, com as camadas sobrepostas na tela. Essa última etapa também lança uma trilha sonora na qual as sete frases são lidas em viva voz ao mesmo tempo. As técnicas de leitura para cada uma das frases, apresentadas como explorações parciais do labirinto, são combinadas para indicar o padrão completo do labirinto textual.[11]

A letra de "Sem saída" serve como resumo do caminho arquitetônica de Augusto de Campos, nos seus mais de 50 anos de atividade poética:

A estrada é muito comprida

O caminho é sem saída

Curvas enganam o olhar

Não posso ir mais adiante

Não posso voltar atrás

Levei toda minha vida

Nunca saí do lugar.

Na obra poética considerada como um todo, metáfora de toda escrita, o caminho é composto de letras, as letras estão colocadas na cara do leitor, a leitura está disfarçada pelo uso de meios diferentes de representação, o desenho – como a vida – engana o leitor, a estrada comprida das letras exige outra preparação do olhar, não é possível ler além ou aquém do desenho, que a realidade é mesmo labiríntica e enganadora, a solução encontrar-se-á, ou não, sem sair do lugar.

REFERÊNCIAS

AGUILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. São Paulo: Edusp, 2005.

BETTIOL, Maria Regina Barcelos "Enganos e desenganos: A invenção do conceito de Barroco Literário e sua representação nas Histórias das Literaturas Luso-Brasileiras do Século XX" in A escritura do intervalo: a poética epistolar de Antônio Vieira. Thèse de doctorat, Université Sobonne Nouvelle – Paris 3, 2008, p. 482. [URL: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Web/978-85-397-0198-8/Trabalhos/71.pdf].

DANIEL, Claudio. "Um poeta em busca da beleza difícil." http://www.elsonfroes.com.br/acampos.htm

GREENE, Roland. "The Concrete Historical," Harvard Library Bulletin, "Material Poetry of the Renaissance / The Renaissance of Material Poetry," New Series 3.2 (1992): 6-18.

HATHERLY, Ana. "A reinvenção do espelho: reflexos da época barroca na Poesia Experimental". In: ---. Esperança e desejo: aspectos do pensamento utópico barroco, ed. e pref. de A. M. Gastão. Lisboa: Theya, 2016.

HILDER, Jamie. Designed Words in a Designed World: The International Concrete Poetry Movement, 1955-1971. Montreal: McGill-Queen's University Press, 2016.

LAUTRÉAMONT. Poésies. Paris: Librairie Gabrie, 1870.

LE BRUYÈRE. Les Charactères. Emmanuel Bury, pref. Paris, Le Livre de Poche, [1688, 1694] 2004.

PICCHIONE, John. "Baroque Poetry in Italy: Deception, Illusion, and Epistemological Shifts". In: Leslie Anne Boldt-Irons, Corrado Federici, Ernesto Virgulti, eds. Disguise, Deception, Trompe l'oeil: Interdisciplinary Perspectives. New York: Peter Lang, 2009.

PORTELA, Manuel. "Concrete and Visual Poetics". Leonardo 14.05 (2006). http://leoalmanac.org/journal/vol_14/lea_v14_n05-06

SOLT, Mary Ellen. Concrete Poetry: A World View. Bloomington: Indiana University Press, 1970.

 

Submetido em 20/07/2019; Aceito em 11/08/2019


Notas

[2] "This probabilistic game with phonetic and semantic similarities and differences is spatialized on the page, in such a way that it foregrounds the fact that a text is always a set of instructions for reading itself. Consequently, the combinatorial procedures that have generated the rhetorical and typographic code of the poem become visible on the textual surface. In retrospect, the poem appears as a script of meaning, even if this meaning is not entirely determinable." Manuel Portela, "Concrete and Visual Poetics," Leonardo 14.05 (2006). http://leoalmanac.org/journal/vol_14/lea_v14_n05-06

[3] Cristina Moreira de Castro Pereira, "A poesia crítica de Augusto de Campos" Inventário: Revista dos Estudantes da Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Bahia, 6.a ed.

[4] "Its conscious and subconscious workings may be observed both below and above the word level: in the first case in the agglutinations, prefixes, infixes, suffixes, and various types of fragmentation of both lexemes, morphemes and even graphemes; in the second case, at the higher level of syntactic units, sentences, and texts. These procedures subject the semantic and ideological level of language to a combinatorial art that, at one and the same time, destroys and reconstructs the texture of inferences and recurrences that upholds discursive coherence. Concrete poetics moulds the structural and psychic materiality of the sign by linking its formal linguistic properties with the mind processing of those properties. Thus it is a poetics of spoken and written language, as much as it is a poetics of hearing and reading." Manuel Portela, "Concrete and Visual Poetics," Leonardo 14.05 (2006).

[5] "The post-Mallarmaic train of poets, for whom Paz and Pignatari are important spokesmen, are aware more often than not of their Renaissance antitypes. Post-modern material poetry cultivates a consciousness of – sometimes almost a scholarly attention to – how its distant antecedents struggled against the literary and cultural order of their times." (Greene 15).

[6] "Deception envelops all aspects of human existence. Writing [is] cut off from naïve notions of mimeses….Poetry is made up of deceitful signs that construct "fables" as empty images, as simulacra. [Poetry] is a tool that puts us on guard against the insidious deceptions of the world." (Picchione, 2009, p. 67)

[7] "Visual deception is a fundamental and inseparable trait of baroque aesthetics […] both architecture and visual arts. …The visitor is forced to make up a mental illusion of an object's dimension that does not exist in reality […]." (Picchione, 2009, p. 61)

[8] "Acuteness of form depends on connections between words and things." Picchione (61).

[9] "[…] the universe is all center, or that the center of the universe is everywhere, and that the circumference is not in any part, although it is different from the center, or that the circumference is throughout all, but the center is not to be found inasmuch as it is different from that." (Picchione, 2009, p. 65)

[10] Tout est dit, et l'on vient trop tard depuis plus de sept mille ans qu'il y a des hommes et qui pensent. (Le Bruyère, 1688-1694)

[11] Manuel Portela oferece uma descrição da operação do poema: "The scripting of reading into writing is also a structural element in an interactive poem by Augusto de Campos in both its electronic screen and printed paper versions. "Sem saída" (no exit) (2000) is a material meditation on the labyrinthine processes of reading. In the electronic version, readers are called on to read seven sentences in seven successive stages. Each sentence is gradually revealed as readers drag the mouse to the right. Sentences appear letter by letter, without word breaks, forming jagged lines in color across the black screen. Dragging the mouse to the left makes the revealed letters disappear. Once one full sentence is revealed, clicking the mouse launches the next textual stage, which is laid out according to the same principles, the only difference being the color and visual pattern of letters on the screen. Clicking the mouse after the last stage launches the seven sentences simultaneously, making their layers superimpose on the screen. This last stage also launches a sound file in which the seven sentences are read aloud simultaneously. Paths for individual sentences, which has been experienced as partial explorations of the labyrinth, are now combined to suggest the complete pattern of the textual labyrinth." Scripting Reading Motions: The Codex and the Computer as Self-Reflective Machines, 354.

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