Oral (Tema Livre)
404-1 | As Benevolentes, de Jonathan Littell: o cruzamento entre ética e estética, na representação do Holocausto | Autores: | Emília Amaral (USP - Universidade de São Paulo) |
Resumo Com data de publicação recente, 2006, o romance As Benevolentes tem recebido elogios e críticas, inserindo-se na polêmica da complexidade que envolve as possibilidades de representação do Holocausto: o paradigma do conjunto de violências que transformou o século XX no palco do desencanto em relação às grandes utopias do mundo ocidental.
Meu propósito, neste trabalho, é discutir como as escolhas estéticas em que o romance se ancora envolvem questões éticas, e em que medida o cruzamento dessas instâncias contribui para uma análise da obra que resista a leituras reducionistas e tendenciosas, aquelas que desconsideram a especificidade, a singularidade de um texto literário, por mais que ele esteja tão ligado ao referente que quase se confunda com um relato historiográfico.
Se é possível classificar o texto em questão como um ramo do romance histórico, em sua vertente pós-modernista, de metaficção historiográfica, sem dúvida ele não se esgota nessa classificação, já que desafia o leitor a decifrar outros elementos nos quais se alicerça, para, de acordo com palavras do autor, “examinar o mal desde dentro”.
A inversão do foco narrativo ─ uso da primeira pessoa, figuração do carrasco nazista por um escritor judeu ─ constitui a escolha estética fundante no sentido de esbarrar num problema ético: por que se colocar no lugar do perpetrador em detrimento daquele reservado às vítimas? Esta consideração, bastante presente na polêmica em torno da obra, se desdobra no uso de dois dos inúmeros repertórios culturais que a estruturam: a Tragédia grega, relida pelo viés da psicanálise, e a erotização de cenas de morte por enforcamento, dentre outras, marcadas pelo binômio sexualidade/crueldade.
A remissão à Tragédia traz à tona o problema da hibris, da desmedida, que pode ser interpretada à luz da reflexão de Freud, em O mal estar da cultura, como o “resto”, o que se recalca em nome da hipertrofia racionalista, e assim caracterizar Maximilian Aue, o protagonista de As Benevolentes, como uma alegoria da Alemanha nazista, em sua queda paradoxalmente apoiada na mais fina vivência cultural e artística.
Como se trata de obra pós-modernista, não há problema em conjugar essa abordagem com aquela mais moderna, pertencente à linhagem de autores como Sade e Bataille, este último traduzido por Jonathan Littell, cuja fixação pela sexualização das cenas de crueldade não deixa de estar ligada à figura principal do romance: seu narrador, dividido, como o autor, entre duas necessidades essenciais: a de procurar uma explicação para o inexplicável e a de recolocar as cenas de barbárie, a partir de alguém que fez parte delas e que sistematicamente provoca o leitor a reconhecer-se dentro, e de forma incômoda, porque como possível perpetrador e não como vítima, do inferno.
A obra, assim, me parece um conjunto coeso, em que a questão ética está indissoluvelmente ligada às escolhas estéticas do autor, não podendo, portanto, ser lida à revelia dessas escolhas, que me parecem mais preocupadas em problematizar o mal que parece estar se perpetuando ao longo do século XXI a espetacularizar o sofrimento dos judeus durante a Shoá.
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