XII CONGRESSO INTERNACIONAL ABRALIC
Resumo:1184-1


Oral (Tema Livre)
1184-1Quixotismo, ou a arte de criar e intensificar modos de vida
Autores:Alexandre Nodari (UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina)

Resumo

Em sua Teoria Estética, Adorno argumenta que a “aversão” de Platão às “mentiras dos poetas,[que,] no entanto, nada mais são do que o caráter de aparência da arte, (...) macula o conceito de arte no mesmo instante em que ele é, pela primeira vez, refletido”. É preciso notar que o ataque de Platão não se dirige tanto à poesia ou à mentira, mas ao seu uso: ambas são drogas que precisam ser corretamente ministradas para o bem da polis; por isso, não são inteiramente banidas: os hinos de louvor e a mentira “cívica” restam autorizadas. Desse modo, o problema da poesia seria o dos efeitos que produz, contagiando e efeminando os homens, que, no teatro, agem diferentemente do que costumam. O risco é que os efeitos da poesia se espalhem para além de suas próprias fronteiras, afetando a vida política – o que, de fato, teria acontecido para Platão: nas Leis, ele argumenta que o “declínio” ateniense derivava da “teatrocracia”, o domínio do auditório: os poetas começaram a misturar os gêneros, acabando com a diferença entre a boa e a má música, ao que se seguiu a intromissão cada vez maior do público nas encenações; público já incapaz de distinguir o bom do ruim, e prepotente ao ponto de levar esta intromissão à política, criando, assim, a democracia. Na Modernidade, o problema do “caráter de aparência da arte” se coloca de maneira ainda mais pungente: o perigo continua a ser o dos efeitos da literatura. Isto é enunciado já no documento considerado marco fundador da forma tipicamente moderna da literatura, o romance: Dom Quixote. O que catapulta as peripécias do “engenhoso fidalgo” é “o mais estranho gênero de loucura que poderia caber em um pensamento disparatado”: a loucura de levar a ficção a sério (haveria um mal ainda pior, o de Quijano/Quixote “fazer-se poeta, que, segundo dizem, é enfermidade incurável e infecciosa”). Os escritores são, portanto, “inventores de novas seitas e de um novo modo de vida”. A referência às seitas e aos modos de vida não é casual (o que é atestado pela data de publicação do romance, entre os dois marcos teóricos do Estado moderno: Os seis livros da República é de 1576, e o Leviatã, de 1651). O Estado moderno se funda justamente para pôr fim às guerras civis religiosas, privatizando a questão confessional, e, portanto, cindindo o homem em uma faceta pública e outra privada, separando a vida de sua forma (a consciência privada da consciência pública na formulação hobbesiana); sua história é, nas palavras do Tiqqun, a de uma “incessante guerra inacabada travada à guerra civil”. Se o Estado é a neutralização das formas-de-vida, então talvez a literatura seja uma tentativa de dar intensidade aos modos-de-vida, tentativa de explorar outros modos-de-vida que não o do Estado. Esta é a hipótese quixotesca que exploraremos neste trabalho: diante de um mundo impossível, em que só há uma forma (a de sujeição ao soberano), a literatura ousa criar um mundo que seja possível – a possibilidade de mundo(s).